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quarta-feira, 19 de junho de 2013

Minhas pernas, o sapoti e a vaia de D. Dilma

Dia 17 de junho, coloquei na tribuna de todos nós, o Facebook, uma foto da concentração de manifestantes diante do Shopping Iguatemi, em Salvador, com a seguinte mensagem: “Eu não estou ali porque sou um velho de pernas trôpegas. Meus netos estão, e ME REPRESENTAM”. A postagem suscitou vários comentários.  Em resposta a um deles, que procurava comparar o que acontece hoje com a chamada “passeata dos cem mil”, no Rio de Janeiro, em 1968, afirmei que o que hoje se vê é bem mais importante, e escrevi: “Em 68 a opção era entre esquerda e direita, em um mundo bipartido entre autoritarismos. A opção de hoje é entre um regime enganador e falido e um início de expressão da cidadania, em um mundo que se abre. É MUITO diferente!”
Reconheço a natureza polêmica de afirmativas desse tipo. Portanto, creio adequado desenvolver um pouco mais minha asserção. Começo pela metáfora do sapoti.
O sapoti é uma das frutas mais saborosas que o clima tropical produz. Entretanto, para ser apreciado na plenitude de seu delicado sabor tem de ser colhido maduro, quando cai espontaneamente do pé. Colhido antes, é duro e insuportável pela quantidade de tanino, popularmente chamado “cica”. Amadurecido “à força”, pode ficar mais adocicado, mas não se compara ao fruto madurado naturalmente no seu devido tempo. O problema é que as aves e os morcegos atacam o fruto maduro, de modo que é raro que se encontre um sapoti caído que já não esteja rompido e precocemente apodrecido.
Assim são as manifestações do povo.
De lenta maturação, servem, ainda verdes, à manipulação por interesses muito particulares, que nada têm a ver com a autenticidade imaginada pelos primeiros teóricos da democracia representativa – aquilo que, no século XX, Habermas chamaria de interesses universalizáveis.
Por outro lado, as ações político-partidárias facciosas, as pressões dos formadores de opinião, a orquestração de interesses poderosos também podem fazer com que, ao amadurecer, a opinião popular se torne precocemente apodrecida em um comportamento de massa particularizado e irrelevante.
Minha (polêmica) tese é a de que estamos diante de um sapoti maduro, isto é, de uma manifestação autêntica e poderosa e, antes de ser acusado de ingenuidade inadmissível, gostaria de explicar detidamente meu ponto de vista.
Aparentemente, tudo se inicia com a elevação do preço das passagens de ônibus na cidade de São Paulo em 20 centavos. Logo, todo o país se incendeia com manifestantes questionando desde o custo do transporte público até a corrupção generalizada. Cria-se, então, um movimento articulado, mas não coordenado, que quer muitas coisas e parece nada querer de modo específico. Aliás, a falta de um objetivo claro foi uma das críticas feitas e esse movimento.
Creio que o movimento tem a força do que costumo chamar reivindicação negativa. Este tipo de reivindicação não se faz para conseguir algo certo e determinado, mas representa a indicação de que um presente estado de coisas é intolerável. Uma reivindicação negativa não pode ser apaziguada pela concessão dos anéis para que se preservem os dedos; mais cedo ou mais tarde, mudanças substanciais precisarão ocorrer, porque a existência de reivindicações negativas indica, precisamente, o esgotamento de um modo de convivência que não pode ser preservado apenas com pequenos reparos.
Se um movimento é feito para reivindicar mais verbas para a saúde ou educação, é uma reivindicação positiva a favor de algo inexistente. Se for feito um movimento para derrubar o governo, tratar-se-á de uma reivindicação positiva contra algo existente. Na reivindicação negativa, não: o que se veicula é que o estado de coisas presentes é intolerável, é que como está não pode continuar, mesmo que não se saiba precisamente o que deve vir depois, ou – o que é mais frequente – que diferentes grupos e participantes tenham receitas de futuro diversas.
A força dos movimentos de reivindicação negativa deriva precisamente disso: eles não buscam algo especifico, buscam o fim de um estado de coisas, deixando em aberto o futuro. O que pode vir é desdobramento do movimento reivindicatório, mas não sua consequência previsível, já que não opera sob o controle da força de um grupo que o tenha organizado – porque tal grupo inexiste.  Os grupos organizadores, que podem estar inseridos no movimento, fazem reivindicações positivas, sejam elas a favor de fatos ou coisas inexistentes, sejam contrárias a fatos ou coisas existentes.
É difícil perceber uma reivindicação negativa, mesmo entre os que a fazem. Por isso, ela ou aparece como pluralidade de reivindicações que parecem erráticas e fracamente correlacionadas ou se afigura reivindicação por algo amplo e genérico que, sem operacionalização, nada significa.
Na verdade, o povo quer respeito. É difícil traduzir “respeito” em uma lista finita de providências concretas. Trata-se de uma atitude diferente no trato da coisa pública. Trata-se de seriedade e razoabilidade nas ações.
Esse movimento não é partidário, mas é profundamente político. O povo não quer derrubar o governo, mas quer derrubar o desgoverno. O povo não quer extinguir a corrupção de um partido, mas quer extinguir a corrupção, não em certos e determinados casos, mas como atitude rotineira no desenrolar das atividades de Estado. O povo não quer verbas específicas, mas quer que o dinheiro público seja empregado com critério.
Esse movimento significa, sobretudo, a recusa de confiança do povo nos grupos políticos que empolgam o poder. Ninguém ficou imune. Não há partido ou personalidade que mereça , hoje, um voto de confiança tal que possa governar sem transparência e sem prestar minuciosas contas do que esteja fazendo. O povo descobriu que os governantes são nossos empregados, que nos pediram emprego pela televisão na época das eleições e, portanto, não podem ser deixados a si próprios como se estivessem gerindo coisa sua.  O povo precisa vigiar o Estado, porque, como diz o ditado interiorano, “é o olho do dono que engorda o gado”.
D. Dilma, coitada, entra nisso como Pilatos no Credo. Estava no lugar certo na hora errada. As vaias que recebeu não são tão relevantes assim. Não sei em Brasília, mas no Maracanã, no Rio de Janeiro, a única personalidade não ligada ao futebol que algum dia foi aplaudida em vez de vaiada foi o general Emílio Garrastazu Médici. Era ditador, mas era popular. Que fazer? Getúlio Vargas também foi ditador e também foi popular. O povo, na verdade, jamais se importou muito com democracia ou ditadura. O sapoti estava verde. Agora é diferente. O sapoti amadureceu. A Constituição Cidadã do doutor Ulysses ajudou a fazer cidadãos. Essa é a grande novidade.

Ser cidadão não é só ir às ruas e reivindicar como quem sabe que pode exigir. A cidadania ainda está sendo descoberta. Quando for plenamente entendida, terá acontecido a primeira revolução verdadeira na história do Brasil. Na África, tudo começou por um tapa na cara desferido contra o camelô tunisino  Mohamed Bouazizi. No Brasil pode ter começado por vinte centavos.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O Muro de Berlim está caindo... no Brasil

Em 1968, uma onda de protestos libertários espalhou-se pela Europa, alegadamente deflagrada pela punição, na França, a um universitário que fora encontrado em “visita íntima” no dormitório das meninas (ou vice-versa, estou citando de memória). O mote da revolta era: “É proibido proibir.”
Quando os ventos europeus de 1968 chegaram ao Brasil, a reivindicação negativa de Danny le Rouge (Daniel Marc Cohn-Bendit, de nacionalidade alemã, mas estudante na França) assumiu a forma de uma reivindicação positiva contra algo: a Ditadura. Sim, havia um governo autoritário cuja margem irrestrita de poder o caracterizava como ditatorial. Entretanto, a letra maiúscula que uso não representa qualquer homenagem minha a essa forma de regime. Uso a letra maiúscula para caracterizar Ditadura como nome próprio, isto é, para referir-me àquela ditadura.
De minha parte, considero a democracia mais conveniente que qualquer ditadura, até do que aquela que me tivesse como ditador.  Não era o caso em 1968. Nem todos os grupos que se opunham à Ditadura tinham, como alternativa ideal, a democracia. Na verdade, muitos deles ficariam felizes se a Ditadura fosse substituída por outra: a ditadura do proletariado que, como Lênin explicou, enquanto este não tivesse consciência de classe, teria de ser exercitada pela vanguarda do proletariado, o Partido, no qual pontificava o Comitê Central sob a iluminada liderança do carismático e infalível Secretário Geral. Fora assim que  Iossif Vissarionovitch Djugashvili, geralmente conhecido como Stalin, tornara-se ditador da União Soviética e, após a segunda guerra mundial, a conduzira na chamada Guerra Fria, o confronto político-ideológico com o  “bloco ocidental”, liderado pelos Estados Unidos.
A Guerra Fria foi um confronto de poder entre duas potências hegemônicas, disputando o mundo globalizado que se anunciava ainda discretamente. Como todo confronto de poder, cada lado escudava-se em uma capa de respeitabilidade ética, defendendo valores que seduziriam seus possíveis súditos: do lado americano, a liberdade; do lado soviético, a revolução proletária mundial.
No Brasil a Guerra Fria produziu o golpe militar de 1964, que possibilitou a Ditadura. Esta se acabaria em 1985, pelo mesmo mecanismo que a havia produzido: a Guerra Fria, neste caso em processo de deterioração. Formalmente extinta em 1991, pelo desmantelamento da União Soviética, a Guerra Fria teve, como ícone mais marcante de seu fim, a derrubada do Muro de Berlim, em 1989. O Muro de Berlim havia sido uma parede de concreto construída e, com o tempo, reforçada entre os lados leste (socialista) e oeste (capitalista) da cidade de Berlim. Desse modo, o muro representava fisicamente a fronteira nítida entre o domínio político da esquerda e o domínio político da direita, nos sentidos em que esses termos eram usados em meados do século XX. A Guerra Fria era, portanto, um confronto entre esquerda e direita.
O golpe militar de 1964 representou uma “derrota” da esquerda no plano bélico. Entretanto, teve e tem entre nós razoável sucesso a estratégia preconizada por Antonio Gramsci (genial pensador e um dos fundadores e líderes do Partido Comunista Italiano) para reverter a hegemonia cultural das classes dominantes. A ideia de Gramsci, em grandes linhas, é que, pelo controle dos meios de comunicação, das organizações religiosas e, sobretudo, do magistério, é possível reformar a mentalidade das gerações vindouras, de modo a criar, na superestrutura social, as condições que a revolução proletária produziria, se fosse viabilizada.
Feliz ou infelizmente, não vem ao caso, no Brasil nada é levado tão a sério assim. Desse modo, o relativo êxito da hegemonia cultural da esquerda traduziu-se pela demonização da direita, mais que por efetivas alterações no pensamento real da sociedade. Ocorreu que, ao mesmo tempo que a esquerda passava a ser clandestina, por temor da perseguição estatal, a direita também passava ser clandestina, por “vergonha cultural”. Ninguém mais no Brasil era de direita.  “Ser de direita” virara um palavrão, abundantemente distribuído a adversários políticos de qualquer matiz. Então, passou a ser comum ver pessoas verbalizarem o discurso da esquerda, porque é “de bom tom”, e pensarem e agirem de forma diferente, sem mesmo perceberem a contradição, porque o próprio significado do discurso só ficara corretamente inteligível a alguns ideólogos conscientes.
Como se sabe, o verdadeiro democrata é o oposto do “dono da verdade”, ou seja, é o oposto dos ideólogos de extremismos, tanto de direita quanto de esquerda. Não é, portanto, surpreendente que a contraposição à Ditadura tenha sido liderada, no seu aspecto mais visível, por opositores que, se pudessem, ficariam satisfeitos com outra ditadura: a sua própria ou de seus amigos.
Criou-se a lenda eleitoral de que a esquerda derrotara a Ditadura e conquistara a democracia. Não é verdade, mas, dizem os italianos, si non è vero è ben trovato, que se pode traduzir livremente como “é uma bela história, mesmo que não seja verdadeira”. Em política, como se sabe, a verdade é, em grande parte, irrelevante; os efeitos decorrem principalmente do que se imagina que seja e não do que é.
A transição brasileira para a democracia foi consentida. Um parecer do ministro Neri da Silveira transformado em Resolução do Superior Tribunal Eleitoral declarou a inaplicabilidade da fidelidade partidária no Colégio Eleitoral, possibilitando juridicamente a eleição de Tancredo Neves. Isto certamente foi facilitado pelo fato de ter o notório senhor Paulo Maluf atropelado o último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo, fazendo-se candidato pela Arena contra a vontade deste.
Tancredo Neves, um homem de centro, fora apoiado pela esquerda. Depois do breve interregno de Collor/P.C. Farias, vêm Fernando Henrique, considerado um homem de esquerda, e a quintessência da esquerda tolerada pelo regime militar: Luís Inácio Lula da Silva. O partido de Fernando Henrique, o PSDB, estruturara-se a partir de intelectuais de esquerda que, antes, formavam os “puros” do PMDB, qualificativo difícil de ser explicado e entendido, tratando-se de política partidária. O partido de Lula, o PT, tinha, em seus estatutos originais, compromisso com a revolução socialista, depois abrandado em tempos de democracia. Era, portanto, a esquerda no poder.
É verdade que o PT no poder não é o mesmo PT da oposição. Disseram-no, mais por atos que por palavras, o então presidente Lula e o então todo-poderoso ministro Dirceu quando defenestraram, por mal ou por bem, os petistas coerentes que saíram para fundar o PSOL. Entretanto, o governo que aí está, chefiado por D. Dilma, invenção política de Lula de quem fora um alter ego tecnicamente competente na administração do governo, é a esquerda “clássica” em toda sua glória: os derrotados de ontem, hoje vitoriosos, graças à democracia.
Chegamos, assim, às manifestações de junho de 2013. Não se trata de um movimento contra o governo e a favor da oposição. Não se trata de um protesto da esquerda contra a direita. A direita, no Brasil, com cara e identidade de direita, já havia desaparecido há muito tempo. Restava uma esquerda “clássica”, parada no tempo, ainda "lutando contra a Ditadura” e que, como a Carolina de Chico Buarque, não viu o tempo passar na janela.
Essa esquerda “clássica” acaba de ser enterrada pelos jovens na rua, que representam os interesses que ela, a esquerda, deveria estar defendendo, só que eles, os jovens, não querem, para isso, uma ditadura. Tal qual os que derrubaram o muro de Berlim e os regimes ditatoriais do leste europeu, com protestos e passeatas, eles não querem algo especifico, mas, apenas, denunciam que “isso que ai está” não pode continuar.
Este governo e seu principal partido não representam mais o santo guerreiro da esquerda personalizada contra o dragão da maldade da direita mais ou menos identificada. Acaba-se, desse modo, a sacralização dos que se arrogavam santidade política em virtude de terem “derrubado” a Ditadura. Acaba-se a blindagem de um grupo político que, alegadamente, é – e só ele o é – o defensor do povo e o único adversário político de nebulosas “elites” (que certamente existem, mas jamais são precisamente identificadas; como fantasma, o inimigo é mais assustador).

É o Muro de Berlim caindo no Brasil. A sociedade chegou a seu limite de tolerância com "isso que aí está", e não há salvadores da Pátria previamente ungidos a quem recorrer. 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Quadrilhas e quadrilhas



Durante os festejos de S. João, feéricos no Nordeste e relativamente acanhados no Sudeste e no Sul, um dos pontos altos da festa é a dança da quadrilha.
Um sertanejo caricato, de camisa xadrez berrante, chapéu de palha desfiado nas bordas, falsos remendos na calça de brim e, por vezes, bigode e cavanhaque grosseiramente simulados por marcas de rolha queimada apossa-se do microfone. Quando a sanfona se faz ouvir, começa a marcar a quadrilha: “Alavantu”... “anarriê”...
A seu comando, movem-se cavalheiros e damas cuidadosamente ataviados: rapazes em figurino parecido ao do marcador e moças em vestidos longos de chitão, adornados de rendas, fitas e enfeites exagerados, combinando com as tranças postiças dos cabelos e maquiagem de mau gosto, não raramente sarapintada de preto, em simulação de sardas.
Não sei bem se deva aqui reconhecer uma tradição ou a chacota politicamente incorreta ao mimetismo estropiado que o homem do campo fazia das quadrilhas dançadas nos salões aristocráticos. Nestes, um melífluo e amaneirado mestre de cerimônias orientava os movimentos de homens e mulheres, vestidos com a elegância da época, ordenando em francês escorreito: “Messieurdames, en avant tous... en arrière...
Estas imagens me vieram à mente quando a ministra Rosa Weber, em voto na Ação Penal 470, abriu uma dissidência para absolver do crime de quadrilha os réus acusados de corrupção passiva, pertencentes ao chamado “núcleo político”, no que foi acompanhada pela ministra Carmen Lúcia.
Se bem as compreendi, suas excelências entenderam que o caso em julgamento caracterizava mero concurso de pessoas para a prática de crime que as beneficiava individualmente e não o crime de quadrilha ou bando, de que trata o art. 288 do Código Penal. Na visão das ministras, para que se considere que atuam em quadrilha, é preciso que as pessoas sobrevivam dos produtos do crime e atuem com interesse de perturbar a paz pública. Pareceu-me – até pelos exemplos aduzidos pela ministra Rosa Weber – que suas excelências consideram a paz pública vulnerável apenas a indivíduos socialmente estigmatizados pela marginalidade caracterizada pelo modo de vida por eles assumido e neles reconhecido pela sociedade.
Este entendimento parece ser compartilhado pelo público em geral. Em outra sessão, um jovem professor de direito, convidado pela emissora televisiva Globo News, tentava explicar a aplicação ao caso da teoria do domínio do fato e afirmava que esse era um modo de tratarem-se crimes perpetrados por grandes e complexas organizações criminosas. Exemplificando com o PCC (Primeiro Comando da Capital), fez veemente ressalva para esclarecer que não estava comparando a organização criminosa da Ação Penal 470 com o PCC.
Por que não? – pergunto eu.
O ministro Celso de Mello em seu luminoso voto esclareceu a questão: “Entendo que o Ministério Público expôs na peça acusatória eventos delituosos revestidos de extrema gravidade e imputou aos réus ora em julgamento ações moralmente inescrupulosas e penalmente ilícitas que culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles concebido e executado, em verdadeiro assalto à Administração Pública, com graves e irreversíveis danos ao princípio ético- jurídico da probidade administrativa e com sério comprometimento da dignidade da função pública, além de lesão a valores outros, como a integridade do sistema financeiro nacional, a paz pública, a credibilidade e a estabilidade da ordem econômico-financeira do País, postos sob a imediata tutela jurídica do ordenamento penal. [...] O sistema constitucional instituiu normas e estabeleceu diretrizes destinadas a obstar práticas que culminem por patrimonializar o poder governamental, convertendo-o, em razão de uma inadmissível inversão dos postulados republicanos, em verdadeira “res domestica”, degradando-o, assim, à condição subalterna de instrumento de mera dominação do Estado, vocacionado, não a servir ao interesse público e ao bem comum, mas, antes, a atuar como incompreensível e inaceitável meio de satisfazer conveniências pessoais e de realizar aspirações governamentais e partidárias.[...] A corrupção deforma o sentido republicano de prática política, compromete a integridade dos valores que informam e dão significado à própria ideia de República, frustra a consolidação das instituições, compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis como as da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento do País, além de afetar o próprio princípio democrático. [...] Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e o rigor das leis desta República, porque significam tentativa imoral e ilícita de manipular, criminosamente, à margem do sistema constitucional, o processo democrático, comprometendo-lhe a integridade, conspurcando-lhe a pureza e suprimindo-lhe os índices essenciais de legitimidade, que representam atributos necessários para justificar a prática honesta e o exercício regular do poder aos olhos dos cidadãos desta Nação. Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente, revela as gravíssimas consequências que derivam dessa aliança profana, desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados, e de parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos, devidamente comprovados, que só fazem desqualificar e desautorizar, perante as leis criminais do País, a atuação desses marginais do Poder.”
Portanto – digo eu – a atuação desses “marginais do poder” não é menos lesiva à paz pública do que a dos marginais que aparecem nas reportagens policiais. São até piores, porque, em vez de a perturbarem na superfície, ferem basilarmente a paz pública ao desmoralizarem a própria essência dos princípios democráticos e republicanos. Desse modo, retiram credibilidade à ordem jurídica cuja sacralidade no imaginário popular é a essência da estabilidade social.
No Brasil, é costumeiro que só se veja gravidade – se é que se vê – nos atos de corrupção em proveito financeiro próprio. Os mentores dessa grande e complexa organização criminosa não encheram os próprios bolsos, mas colocaram sua ação deletéria a serviço de um projeto de poder político. Isto não os exime de execração. A demolição dos alicerces da ordem republicana, tão bem enfatizada pelo eminente ministro Celso de Mello, é o crime maior contra o sistema político que o povo quis consagrar na Carta Magna de 1988.
Não discuto as tecnicalidades jurídicas expendidas pelas ilustres ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia. Observo, apenas, que a diferença entre a quadrilha do PCC e a do mensalão parece-me semelhante à diferença entre a quadrilha da roça e a dos salões: diversas na aparência, idênticas na substância. Com a agravante de que é a quadrilha dos salões do poder que me desperta maior repugnância.

domingo, 23 de setembro de 2012

Dona Dilma, Pôncio Pilatos e o mensalão, ou quando a qualidade se torna defeito


Pôncio Pilatos é personagem bíblica com historicidade confirmada pelos autores judeus Filon de Alexandria e Flávio Josefo, além de por uma pedra, encontrada, em 1961, nas ruinas de Cesareia Marítima, que identifica seu nome com a função de Praefectus da Judeia.
D. Dilma, por sua vez, é personagem da história do Brasil como presidente da República eleita em 2010, em impressionante fenômeno de imposição política interna (ao Partido dos Trabalhadores) e transferência de votos dos eleitores do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. A historicidade de D. Dilma é comprovada por numerosos documentos, muitos deles publicados no Diário Oficial, grande parte integrando as notícias da mídia escrita, falada e televisiva. Entre estes, chama a atenção a nota, divulgada por “Dilma Rousseff, Presidenta da República Federativa do Brasil”, que se refere a voto do “senhor ministro Joaquim Barbosa”, proferido na Ação Penal 470, em julgamento no Supremo Tribunal Federal.
É difícil estimar qual das duas personagens é mais conhecida entre nós. Sabe-se que nem todos os cidadãos brasileiros estão suficientemente informados, quanto à estrutura do Estado, à função dos agentes políticos e, até, ao nome da Chefe de Estado e do governo que, à época da campanha eleitoral, muita gente simples referia como “a mulher do Lula”.  Creio, entretanto, que a totalidade dos adeptos brasileiros do cristianismo, em todas as suas variantes, pelo menos ouviu falar de Pôncio Pilatos, o homem que, na versão edulcorada de Mateus (capítulo 27), Marcos (capítulo 15), Lucas (capítulo 23) e João (capítulos 18-19), teria autorizado, docemente constrangido, a crucificação de Jesus.
O uso dessa linguagem reticente deve-se ao fato de que a historicidade de Pilatos está estabelecida, mas seu comportamento descrito nos evangelhos canônicos é curiosamente implausível.
Pilatos era um militar oriundo da ordem equestre, para quem a prefeitura da Judeia era uma realização significativa. Não era um estadista nem um político. Sua brutalidade e ausência completa de sensibilidade apoiam-se em fatos registrados, assim como sua capacidade de trucidar inocentes sem o menor constrangimento. Embora esse fosse um comportamento normal para o método romano de dominação, o caso de Pilatos era suficientemente excessivo para que seu superior, o legado romano da Síria, o mandasse voltar a Roma, a fim de explicar-se com o imperador Tibério. Este, entretanto, faleceu, e o destino do prefeito foi resolvido no primeiro ano do reinado de Calígula.
Discrepa agudamente do que se sabe do Pilatos histórico a ideia de que tal homem trataria os sacerdotes e homens do povo com punhos de renda, quase implorando para que o deixassem salvar aquele que havia mandado açoitar selvagemente, cedendo, ao final, com relutância, ao brado terrível – sanguis eius super nos et super filios nostros (Mateus 27:25) – exclamação que, pelos séculos, seria um piedoso fundamento do antissemitismo. Mais duvidosa se torna a precisão do relato quando nos recordamos de que os evangelhos foram escritos no final do século I, quando a rebelião na Palestina havia tornado os judeus inimigos notórios do Império. Nessa mesma época, o programa paulino de expansão do cristianismo já se havia imposto e seria de toda conveniência que a “seita dos nazarenos” se distanciasse do judaísmo. Nada, portanto, mais conveniente que a mensagem: “quem matou nosso Mestre foram os judeus, não Roma, cujo representante quis desesperadamente protegê-lo”
A narrativa bíblica, porém, independentemente de sua precisão factual, apresenta um conteúdo dramático que tem valor em si mesmo como fonte de inspiração e ensinamento. Reporto-me à narrativa de João. Pilatos teria escrito, para ser afixado na cruz, o delito que o crucificado havia cometido – Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum (João 19:19). Diante do protesto dos sacerdotes, que queriam que o prefeito alterasse seu texto, para explicar que o condenado se dizia rei dos judeus, a resposta foi: quod scripsi, scripsi! (João 19:22) – o que escrevi, escrevi!
Esta constatação teria sido útil a D. Dilma, em uma versão paralela: o que falei, falei! D. Dilma foi ouvida judicialmente no processo do chamado mensalão e declarou-se “surpresa” com a velocidade da aprovação de medida legislativa proposta pelo governo em certa data. Só isso. Isto aconteceu e foi dito pelo ministro Joaquim Barbosa, relator da Ação Penal 470. Em nenhum momento a cidadã brasileira Dilma Rousseff que, como qualquer do povo, cumpriu sua obrigação de, legalmente convocada, esclarecer a Justiça, negou ter proferido as palavras que o ministro relator a ela atribuiu. Inopinadamente – e eu diria estarrecedoramente, se alguma coisa ainda houvesse para estarrecer nesta República – ao mesmo tempo em que D. Dilma, a cidadã, nada teve para questionar, D. Dilma, a presidente da República, permitiu-se, nessa qualidade, corrigir um ministro do Supremo Tribunal Federal quanto ao modo como deveria interpretar ou utilizar um depoimento nos precisos termos em que se encontra no processo.
Pilatos sabia que o que ele havia escrito, estava escrito. Era um ato perfeito. Como diz o provérbio, três coisas não podem retornar para serem alteradas: a flecha lançada, a palavra proferida e a oportunidade perdida. D. Dilma, correndo atrás da palavra proferida em uma espécie de tentativa de explicar que o que disse, disse, mas não queria dizer, perdeu a oportunidade de praticar outro ato de sabedoria de Pilatos, antes da condenação infame. Diz Mateus (27:24): Videns autem Pilatus quia nihil proficeret, sed magis tumultus fieret, accepta aqua, lavit manus coram turba dicens: “ Innocens ego sum a sanguine hoc; vos videritis! – Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso.
Ao contrário do romano, D. Dilma, vendo que nada aproveita, antes a possível condenação dos “justos” de seu partido torna-se cada dia mais ameaçadora – uma inovação quase revolucionária neste país das Bruzundangas de Lima Barreto – em vez de manus lavare achou-se no direito – e no meu ponto de vista na (duvidosa) obrigação – de afrontar imprudentemente a independência dos poderes, um dos pilares do Estado Democrático de Direito.  Não fora a compostura do ministro Barbosa, sabendo controlar seu impulsivo temperamento em favor de um bem maior, e a sábia tranquilidade do presidente do Supremo, o ministro Ayres Britto, poder-se-ia estar diante de uma crise constitucional.
Não acredito que ela tenha feito isso porque imaginasse que sua excelência o ministro relator ou qualquer de seus eminentes pares vá tremer diante do sobrolho cerrado do Palácio do Planalto, mas porque imagina dever isto a seu mentor, o ex-presidente Lula, acusado pelo ministro Gilmar Mendes de tentar interferência explícita na pauta da Suprema Corte, como parte do projeto de varrer o mensalão para debaixo do tapete político, o que só se obteria mediante um final jurídico pífio para o rumoroso e volumoso processo.
A passagem dos anos afastou-me a alegria algo pueril de citar a mim mesmo, no passado, para, corroborado pelo presente, afirmar triunfante: eu não disse? Portanto, é quase com escusas que relembro ter escrito, em 11 de setembro de 2010, sob o título D. Dilma, o poste o o cardeal Roncalli, o seguinte: “acredito -- apenas acredito -- que D. Dilma tentará apaziguar o PT e não decepcionar Lula.  Isso perturbará, talvez, os dois primeiros anos de seu governo.  Mas dizem que D. Dilma tem pavio curto.  Vai chegar um momento em que ela vai perceber que não pode deixar de governar para atender a exigências ideológicas ou fisiológicas do partido. Um pouco depois, talvez, a notória diferença de capacidade administrativa (não estou falando de capacidade político-eleitoral) entre D. Dilma e seu patrono, a favor dela, vai fazer com que ela o decepcione, por mais que tente não fazê-lo”. 
Quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso referiu-se, em artigo publicado, à “pesada herança” deixada por Lula, D. Dilma apressou-se a responder, por meio de nota em que elogiava a maravilha transmitida a ela pelo antecessor. O PT exultou. Lula ficou satisfeito, e D. Dilma também, por ter marcado um “gol de placa” político-partidário. Isto foi importante, porque a superioridade administrativa do governo Dilma e, mesmo, sua maior preocupação ética já causavam desagrado nas hostes do grupo mais chegado ao mítico Luís Inácio.
Entretanto, D. Dilma parece não ter percebido a diferença entre defender um líder ou grupo político contra artigo de um oposicionista e criticar o voto de um ministro do Supremo Tribunal Federal. O ministro Joaquim Barbosa não inventou nem distorceu o depoimento constante dos autos. Ele o utilizou no seu voto conforme entendeu adequado. Cabe a seus pares concordar ou não, como, aliás, tem acontecido. Cabe à defesa dos réus contestar a decisão colegiada dentro das regras do devido processo legal. É tudo aberto, transparente, com o amplo direito de defesa sobejamente assegurado. O ministro Joaquim Barbosa não é infalível, que o diga o ministro Ricardo Lewandowski, que também não o é. Os debates em plenário, nem sempre propriamente amenos, transcorrem como é natural entre juízes independentes. O ministério público apresentou seu arrazoado, acolhido no todo, em parte ou recusado pelos julgadores, considerada a prova dos autos e a defesa dos réus, formulada por escrito e em sustentação oral. Tudo isso é normal, assim como normal é, em países civilizados (embora ainda não usual no Brasil), a condenação de corruptos, quadrilheiros e lavadores de dinheiro de alto coturno.
Devo confessar que tenho simpatia por D. Dilma e admiro a lealdade dela, que considero autêntica e sincera, a seu criador político. Entretanto, como sabe qualquer pessoa razoavelmente instruída, Estado, governo e grupo político no poder são três coisas diferentes. Ao ser eleita Chefe de Estado e do governo, ela deixou o papel de mera servidora ou líder consentida do grupo político no poder para exercer funções constitucionalmente regulamentadas para o Estado brasileiro e toda sua sociedade. Neste caso, as qualidades da gratidão e da fidelidade canina a seu mentor deixam de ser positivas para tornarem-se grave defeito na gestão político-institucional. Se D. Dilma deixar de disputar a reeleição em benefício do ex-presidente Lula, eu posso lamentar, mas admirarei e respeitarei o gesto de desapego e disciplina partidária. Entretanto, como presidente (ou presidenta, como ela prefere) não lhe assiste o direito de praticar atos que desmerecem sua presidência pelo simples fato de existirem, sem mencionar a inútil associação de sua imagem a crimes com os quais nada indica que tenha cumplicidade.
Espero que a rápida indicação do ilustre e impoluto ministro Teori Zavascki para a vaga deixada no STF pela aposentadoria do ministro Peluso não esteja acompanhada por alguma esperança de aumentarem-se as possibilidades de prescrição dos crimes que provocaram a Ação Penal 470 em virtude de um eventual pedido de vistas regimental, o que seria, no caso, perfeitamente justificado pelo volume do processo. Assim como D. Dilma no caso da aprovação do marco regulatório do setor de energia elétrica, a presteza da indicação do novo ministro também surpreendeu muita gente, eu inclusive. A carreira do ministro Teori Zavascki é, quanto a isso, tranquilizadora. Entretanto, a desastrada nota presidencial suscita o temor de que sua excelência esteja a entrar em uma armadilha, na expectativa de ser seu zelo jurídico utilizado para fins alheios ao caráter e à competência, inequívocos ambos, do eminente magistrado.
A jornalista Dora Kramer registrou: “Muito já se viu nesse Brasil, mas presidente da República responder a voto de ministro do Supremo Tribunal Federal, francamente, é a primeira vez.” Que pena tenha sido D. Dilma a inauguradora dessa aberração institucional!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Madame de Sevigné, dona Dilma e a liderança da oposição

A marquesa de Sevigné (nascida Marie de Rabutin-Chantal) foi uma escritora francesa que viveu entre 1626 e 1696, praticamente durante o reinado de Luís 14, o Rei Sol. Em época na qual as mulheres ainda não se destacavam pelas atividades intelectuais, ela tornou-se famosa pela contribuição à literatura epistolar de seu idioma.  Suas cartas à filha, narrando o cotidiano, além de primorosas, guardam valiosas informações quanto à vida no século 17, enriquecidas não apenas pelas minúcias dos acontecimentos, mas pelas reflexões com que a marquesa as acompanha.
Em uma de suas cartas, Madame de Sevigné conta uma peça que o rei Luís 14 pregou ao marechal de Grammont, fidalgo de antiga estirpe.  Diz a autora que, um dia, o rei mostrou ao cortesão um madrigal, forma poética então em grande voga, e lhe disse:
– Senhor marechal, leia, por favor, este madrigal e diga-me se já viu algum mais tolo e ridículo, porque desde que se soube que eu gosto de poesia eu os recebo de todas as qualidades.
O marechal leu e respondeu:
– Senhor, Vossa Majestade julga divinamente bem acerca de todas as coisas.
– Não é verdade, senhor marechal, – prosseguiu o rei – que quem o redigiu é um idiota?
– Senhor, – disse o marechal – não há como chamá-lo de outra maneira.
Então o rei, retomando o madrigal, concluiu:
– Senhor marechal, obrigado por ter falado com tanta franqueza.  Fui eu mesmo que o fiz.
O marechal, em pânico, pediu:
– Senhor, que traição! Devolva-me o madrigal.  Eu o li de modo superficial.
E o rei:
– Não, senhor marechal, as primeiras palavras são sempre as mais sinceras.
Madame de Sevigné informa que o rei riu muito dessa bobagem, e assim toda a corte, que considerou ser esta a pior pequena maldade que se pode fazer a um velho cortesão.
A história do madrigal me veio à mente ouvindo o primeiro pronunciamento de D. Dilma Rousseff, recém eleita presidente do Brasil.
O discurso foi primoroso. Completamente diferente de tudo que se viu e ouviu na campanha eleitoral. Foi um discurso ponderado, com altitude de estadista. Quase desprovido de emoção, valeu pela precisão técnica, em termos de conceitos e oportunidade. Embora não tenha tocado em todas as questões que precisarão da atenção presidencial, arrolou muitas das mais importantes, chegando ao cúmulo de deixar entrever uma intenção de ajuste fiscal, sem usar, é claro, esta expressão, que soa como palavrão aos ouvidos do PT.
Prometeu responsabilidade e combate à corrupção e ofereceu aos que não a acompanharam não um chamamento ao adesismo, mas a proposta de uma convivência digna e democrática.
Durante o discurso, tentei imaginar aquelas frases na boca do presidente Lula, mas nada mais distante da retórica do antigo líder operário.  Em vez disso, a voz que se insinuava era a do deputado e ex-ministro Antônio Palocci, que, aliás, acompanhava a presidente eleita o tempo todo, desde que ela saíra de casa.
Palocci é um homem de grande sensibilidade política, ameno no trato e excelente negociador, além de ser dotado de bom descortino.  Foi execrado pelo episódio da quebra ilegal do sigilo bancário de um cidadão cujo depoimento em Comissão Parlamentar de Inquérito comprometeria o então poderoso ministro, afirmando sua presença em uma casa mais do que suspeita, onde Palocci afirmava nunca ter estado. Afastado, por isso, do cargo, ele foi julgado e absolvido de todos os malfeitos que lhe foram imputados. Portanto, mesmo que não seja um integrante das coortes angélicas caído, por descuido, na face da Terra, é um político bastante aceitável, mesmo em tempos de ficha limpa.
Ao ouvir D. Dilma, desejei que, como afirmou o rei de França, na narrativa da marquesa de Sevigné, suas primeiras palavras tenham sido as mais sinceras.
Mas não foi só D. Dilma que falou algo importante naquele dia.  Pouco antes do discurso da nova presidente, divulgou-se uma nota do senador eleito Aécio Neves, cujo tom é o de líder da oposição.
A nota é polida, mas representa uma atitude opositora firme e civilizada, configurando-se, também, como palavras de um estadista.  Fiquei feliz em ver que o simpático rapaz cujo maior mérito inicial era ser neto de Tancredo Neves, tendo amadurecido pessoal e politicamente e sido consagrado por uma grande vitória eleitoral no estado que governara com brilho, se havia tornado uma alternativa viável de poder, na jovem democracia brasileira.
O discurso de D. Dilma e a nota do senador Aécio assemelham-se, pela elegância e pelo conteúdo democrático, aos grandes debates entre o Governo de Sua Majestade e a Leal Oposição de Sua Majestade, na terra em cuja história foram semeados e cultivados os ingredientes fundamentais da democracia moderna.
Com eles contrasta o discurso fragmentário e um tanto desconexo do candidato derrotado, José Serra, feito bem depois que a vencedora do pleito havia falado.
Visivelmente abatido, beirou a indelicadeza e, embora tenha conclamado as forças que o apoiaram a permanecerem em combate, não convenceu como fala de uma liderança. Seu esquecimento, reparado na última hora, em citar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a completa omissão do nome do senador Aécio Neves mostram que a contrariedade e o desapontamento perceptíveis na ocasião têm uma explicação mais abrangente que a mera perda na competição eleitoral.
Voltando ao discurso de D. Dilma, desejo a ela e a todos nós que seu governo esteja à altura do discurso inaugural. E se pudesse aconselhá-la, recomendaria que meditasse as palavras de Madame de Sevigné ao fim da carta em que conta a história do madrigal: “Eu, que gosto de refletir sobre as coisas, desejaria que o rei também fizesse isso e percebesse o quanto sua posição o afasta de saber sempre a verdade”.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O público e o privado: cabem argumentos religiosos na campanha política?

Em sua obra O Conhecimento Humano: sua finalidade e limites, o matemático, lógico e filósofo inglês Bertrand Russel dedicou diversas páginas à discussão do que seja público e privado. Sua preocupação situava-se na área da epistemologia; portanto a discussão de público e privado que ele faz tem um viés epistêmico, ou seja, diz respeito ao conhecimento. De modo esquemático, público e aquilo que é ou pode ser conhecido por qualquer indivíduo, superados eventuais obstáculos de ordem prática que impedissem esse conhecimento, enquanto privado é algo que é conhecido por um determinado indivíduo, e não pode ser de outra maneira.
Essa definição é suficiente para decidir, na maior parte dos casos, se determinado conhecimento é público ou privado; em outros casos, porém, a decisão pode não ser simples. Se não vejamos: o som de um sino badalando, audível em um raio de quilômetros, é obviamente público. A confidência de um moribundo, murmurada ao ouvido de um sacerdote que lhe vá ministrar os últimos sacramentos e que, por dever de ofício, obriga-se a manter o sigilo da confissão, parecerá particular, já que não é nem pode ser conhecida por mais ninguém.
Entretanto, ela poderia não o ser, se houvesse mais pessoas presentes ou se tivesse sido monitorada por adequados instrumentos de ampliação do som, como os usados em espionagem. A opinião, porém, de qualquer ouvinte do que foi dito é estritamente privada, e continuará a sê-lo, mesmo que declarada, até porque ninguém saberá se a verbalização dela, quando seja feita, é verdadeira ou falsa.
O que se quer dizer com isso é que a confidencialidade, que é mera circunstância do segredo enunciado, não se confunde com a natureza pública que assiste a todas as declarações. O segredo não é conhecido de todos, mas poderia ser, se as circunstâncias fossem outras.
Esse uso epistêmico das noções de público e privado é diverso da definição político-institucional desses termos. Enquanto a epistemologia se refere ao conhecimento, a gestão pública reporta-se a interesses. Então, do ponto de vista político-institucional, público é o que interessa ou pode interessar a toda gente, enquanto privado é o que interessa a certas e determinadas pessoas, e só a elas pode interessar.
Os dois campos começam a misturar-se, no entendimento do homem das ruas, não afeito à abstração e ao rigor de pensamento, quando o interesse político é confundido com o interesse psicológico, ou seja, com a motivação para saber, a curiosidade.
Ora, o interesse político dirige a atenção para ações que afetam ou possam afetar a sociedade como um todo, enquanto a curiosidade individual associa-se ao desejo de sentir as emoções provocadas pelo conhecimento do inusitado e, frequentemente, do proibido. Isto pode levar à pura e simples, embora equivocada, identificação dos dois domínios, o epistêmico e institucional, imaginando-se que tudo que é público – no sentido de ser passível de conhecer-se – é público no sentido de afetar politicamente a todos.
O jogo que se faz com esses dois conceitos, distintos em princípio, tem relevância para a política partidária, seja quando se reluta em tornar público (ou seja, deixar-se conhecer) algo que tem interesse político generalizado (portanto, que é de natureza pública), seja quando se divulga (torna público) como se fosse importante algo de natureza particular, mas que muitos desejam saber pelo aspecto incomum ou escabroso.
Há alguns anos, um político e diplomata cuja homossexualidade era comentada a boca pequena pretendeu candidatar-se a prefeito do Rio de Janeiro. Alegadamente, sofreu ameaça de chantagem por um indivíduo que teria declarado a intenção de divulgar histórias de relações íntimas entre ele e o político. Provavelmente temeroso de algum efeito negativo dessas notícias sobre seu possível eleitorado, o político referido encenou uma cerimônia nupcial com uma secretária, envolvendo até mesmo o cardeal-arcebispo,  inocente e indignada vítima da farsa, tanto quanto se sabe. Ao que se comentava à época, durante a “cerimônia”, a “noiva” tratava o “noivo” por “doutor”, o que é pouco usual como demonstração de intimidade.
O político em questão poderia ter meu voto, pela sua competência e aparente probidade, em nada me interessando, como cidadão, sua sexualidade ou o modo pelo qual a exercitava – assuntos de sua vida particular. Pela farsa montada para iludir o povo acerca de um assunto que não era, repito, de natureza pública, perdeu a possibilidade de ter esse voto, porque quem se propõe a enganar seus possíveis eleitores em um assunto qualquer, particular ou público, perde, por isso, a credibilidade. Para muitos, aspectos que eles consideravam escandalosos da vida particular do político pareciam ter interesse, mas era mero interesse psicológico, curiosidade acerca de uma questão de natureza particular. A disposição para iludir o eleitorado, porém, era de interesse público, isto é, afetava quem tinha e quem não tinha curiosidade acerca da vida privada do indivíduo, solapando tanto sua credibilidade que ele, afinal, desistiu da candidatura.
John Locke contrapôs à ideia de sociedade política o conceito de sociedade civil, ambas compostas pelos mesmos cidadãos. A sociedade política refere-se a eles como súditos e eventuais controladores do Estado e a sociedade civil reúne-os como titulares de direitos intrínsecos que, não tendo sido conferidos pelo Estado, dele não dependem para serem mantidos ou derrogados. Ao Estado cabe, apenas, garanti-los. A partir de então, torna-se fundamental para a noção (moderna) de democracia a existência da sociedade civil e seu corolário, a vida privada – espaço de discricionariedade do cidadão em que o Estado não é chamado a intrometer-se.
Durante as transformações políticas que marcam a modernidade, importantes aspectos da existência foram transferidos do domínio da vida pública para o domínio da vida privada. Na tradição ocidental, a religião foi alvo desse deslocamento, tornando-se o Estado secular, isto é, não religioso. Há, porém, conceitos ideologicamente relevantes que, no passado, derivavam da religião, como verdade, justiça e os fundamentos da moral. Esses conceitos continuam válidos, mas, agora, quando de inspiração religiosa, restritos ao domínio da vida particular de quem professe a religião que os origina. 
Entretanto, persiste a necessidade deles no âmbito da vida pública. Apenas, em virtude da secularização do Estado, é preciso que a definição pública desses conceitos independa da sua versão privada, mesmo quando aconteça de serem coincidentes nas duas versões.
Para o conceito de verdade a solução é óbvia. Pelo êxito inequívoco da ciência moderna, o conceito público de verdade aceito pelo Estado secular é o mesmo que legitima o conhecimento científico. Então, as questões cognitivas podem ser politicamente tratadas – e o são, efetivamente – mediante um conceito público de verdade que não se confunde com as ideias de verdade que qualquer tipo de fé possa inspirar a indivíduos particulares, embora essas noções possam ter efeitos significativos nas vidas dos que as aceitam pela fé.
As coisas se complicam um pouco mais quando se trata de temas morais. Em um artigo publicado há algum tempo, examinei a dificuldade de se estabelecerem padrões morais indiscutíveis nas sociedades plurais, ou pluri-ideológicas. Na verdade, essa dificuldade implica que se precise definir um padrão moral comum mínimo, de natureza pública, tornado obrigatório pela Lei, convivendo com padrões particulares de moralidade que nem podem conflitar com a Lei nem ser impostos a terceiros que deles discrepem.
Essas considerações servem para esclarecer porque o Estado não pode utilizar-se de argumentos religiosos para fundamentar decisões políticas.
Se, porém, o Estado está privado dessa possibilidade, a partir de sua secularização, o mesmo não se aplica ao cidadão em sua vida particular: ele é submisso à Lei, como membro da sociedade política, e titular de uma consciência livre que orienta seu agir, como membro da sociedade civil.
Entretanto, há uma importante circunstância, desta vez na vida pública, em que essas duas esferas se encontram,. Em uma eleição, o ato público de formalizar a escolha é motivado por um elemento essencialmente privado: a opinião. Esta, sendo de natureza privada, pode lastrear-se em considerações eminentemente públicas, mas também pode ser fundamentada em questões estritamente particulares e, até, ser desprovida de qualquer alicerce racional.
É assim que argumentos morais de inspiração religiosa infiltram-se nas campanhas políticas.
Do mesmo modo que igrejas podem propugnar a eleição de seus dirigentes ou prepostos para constituírem, no parlamento, uma bancada defensora de seus interesses materiais – e efetivamente o fazem – podem, até com melhor justificativa moral, desenvolver campanhas favorecendo ou desfavorecendo candidatos cujas plataformas pareçam àquelas agremiações mais ou menos consentâneas com a saúde espiritual de seus rebanhos.
O Estado secular, que opera na esfera pública, não pode justificar a decisão política por argumentos religiosos, que são de natureza particular, mas o cidadão, no exercício de sua liberdade, pode formar sua opinião (de natureza particular) a partir de suas crenças (também de natureza particular) e agir publicamente, ao votar, motivado por elas. Dependendo de seu nível de cultura política, ele poderá deliberar por si próprio, levando em consideração a orientação de sua igreja ou de outros mentores que reconheça e respeite, ou poderá alienar sua vontade, acompanhando cegamente um comando que não chega sequer a compreender em profundidade.
A primeira hipótese é perfeitamente adequada no contexto da democracia. Nada há a objetar a ela. A segunda pode acontecer. Se é boa, é uma outra história. De qualquer modo, obviá-la não é uma questão de lei eleitoral. Depende da educação do povo.