Ilustríssima senhora Coordenadora Geral de Graduação da Faculdade Ruy Barbosa,
professora Ana Claudia Pinheiro Rodrigues de Mattos, ilustríssima senhora
Coordenadora do Curso de Direito Cátia Regina Raulino, ilustríssimos senhores Professores
homenageados Alina Mourato Eleotério, José Ferreira Coelho Neto e Teresa
Cristina Ferreira de Oliveira, senhoras e senhores professores, meus queridos,
muito queridos, antigos alunos e hoje bacharéis em Direito, minhas senhoras,
meus senhores.
Os
Estoicos – eu lhes disse algum dia em sala de aula – admitiam que o mundo fosse
regido por um Lógos, um princípio de
racionalidade que, por sua providência, determinava com certeza os
acontecimentos do mundo, e o ser humano abriga em si uma centelha do Lógos e,
assim, é dotado de razão, podendo compreender os desígnios dessa providência. Os
primeiros pensadores cristãos, que formularam a chamada filosofia patrística,
tomaram de empréstimo essa ideia para construir a noção de providência divina.
É essa racionalidade individual, reflexo do Lógos,
para oe estoicos, ou imagem de Deus, para os cristãos, que permite ao ser
humano agir voluntariamente para realizar os propósitos da providência, porque ela
age por meio, também, da atividade humana.
É,
portanto, por meio da generosidade de vocês, meus queridos bacharéis, que a
providência me concede, a título de despedida, essa homenagem extraordinária e
comovedora em meu último ano de residência no Brasil. E, aqui, cabe agradecer à
direção da Faculdade Ruy Barbosa a aquiescência indispensável a que pudesse eu
aqui estar, quando já não participo do corpo docente da instituição que deixei,
em bons termos, no ano passado.
Nada
lhes posso oferecer que se equipare ao gesto de escolherem, como seu paraninfo,
um professor de matéria dita propedêutica, com quem conviveram apenas no início
de seu curso. Entretanto, se lhes pudesse oferecer algo em troca, seria uma
flor de lótus.
O
lótus é metáfora habitual da pureza, no pensamento indiano, porque deitando
raízes na lama, sua flor se ergue imaculada acima do lodaçal. E eu lhes peço
que sejam como o lótus ao penetrarem, como operadores do direito, na vida
pública de nosso país.
Seria
este o momento em que lhes falaria da grandeza da profissão das leis. Quem
sabe, citaria advogados ilustres – como o saudoso Heráclito Fontoura de Sobral
Pinto, o advogado sem medo – cuja trajetória luminosa os transformou em mitos
da arte jurídica. Mas hoje em dia, é preciso começar por exortações mais
modestas e, entretanto, fundamentais.
Feliz
ou infelizmente, o Brasil deixou de ser conhecido como o país do samba e do
futebol. Agora, ele é conhecido, de preferência, por um monumental
empreendimento jurídico: a operação Lava Jato. Vergonha para nós que ela tenha
de existir, mas é ela que tem granjeado no exterior, uma atitude de respeito – a
evidência de que o país, ao contrário de muitos outros, rejeita a corrupção e a
ela reage. O que desperta a atenção no exterior, é a existência, no Brasil, de
uma justiça independente e atuante.
Mas
a operação Lava Jato é a ponta de um iceberg que, como se sabe, tem submersa e
invisível a maior parte de seu corpo. Pequenos indícios aqui e ali, tratados
primeiro como episódios isolados, revelaram aos poucos a virtual septicemia do
organismo público brasileiro, a necessitar de medidas heroicas, de caráter
clínico e cirúrgico, para que o paciente não viesse a óbito.
Poder-se-ia
pensar que estamos apenas diante de uma comparação retórica, e que esse
organismo, tratado com remédios amargos e sujeito a amputações, não sofra,
porque não é humanos. Errado! Esse organismo tem uma parte vulnerável e
sensível, que é o povo. O povo sofre. Sofre pela privação daquilo que lhe é
devido. Sofre pelo esbulho de que é vítima. Sofre, antes de mais nada pela
perda da esperança.
A
quem recorrer se a maioria das estruturas estão carcomidas? A quem recorrer
quando governadores e juízes parlamentam com chefes de comandos criminosos para
apaziguar o sistema carcerário, sistema, aliás, que já foi caracterizado no
Supremo Tribunal Federal com constituindo um estado de coisas inconstitucional.
E por que parlamentam eles? Levantam-se suspeitas de que existe ou existiu uma
aliança sub-reptícia entre o crime e a autoridade, para atendimento de
interesses inconfessáveis de parte a parte.
A
quem recorrer quando, em nome do atendimento de necessidades reais e prementes,
campeia um ativismo judicial que se exerce sem controle, deixando praticamente
tudo ao “prudente arbítrio do juiz”, muitas vezes mais arbitrário que prudente?
Ou quando magistrados se consideram acima do comum dos mortais a ponto de punirem
por desacato uma funcionária pública que, exercendo rigorosamente suas funções
de vigilância, disse diante de um magistrado com o carro em situação irregular:
“ele é juiz, mas não é Deus”. E o que pior, sua sentença foi confirmada pelo
Tribunal, em segunda instância.
A
quem recorrer quando o corpo legislativo abriga pessoas que estão sob suspeita,
de vez que pesam acusações graves contra quase a metade dele, e ainda não se
sabe quem é quem?
A
quem recorrer, quando chefes do poder executivo são destituídos quase
rotineiramente por crimes eleitorais ou de outra natureza?
Na
ausência da esperança, o modo de enfrentar a realidade é a anestesia. É a
crença desanimada de que “é assim mesmo”. É a suposição de que melhor que isso
não poderia ser, até porque grande número dos que lançam brados de revolta
estão, na verdade, capitalizando em proveito próprio a insatisfação popular.
A
segurança das pessoas honestas remete-se a trancarem-se em casa e não passarem
por lugares “perigosos” em horas “impróprias”. Hoje, em um estado da federação,
com policiais amotinados, os horários impróprios e os lugares perigosos são
todos.
Os
mecanismos estatais de segurança, muitas vezes realmente despreparados, são
demonizados, enquanto a marginalidade é apontada como vítima de uma sociedade
discriminadora, de sorte que o indivíduo acuado ainda deve arcar com uma culpa
difusa que ele não pode compreender, a tentar convencê-lo de que é o culpado
pela violência que o vitima.
A
violência – diz-se com ares de quem profere uma verdade absoluta – decorre da
miséria, e, portanto, enquanto a sociedade não for perfeita é assim que deve
acontecer. Como a sociedade não é – e nunca será – perfeita, as autoridades
dispensam-se de providências para defender o cidadão, repetindo o que, sem ser
propriamente uma tolice em um contexto específico, representa, tomado em termos
absolutos, um indecente ultraje aos muitos milhares de pessoas pobres, muito
pobres, miseráveis mesmo, que lutam e sofrem, mas mantém-se em um padrão de
honestidade irrepreensível.
Os
bilhões desviados pela corrupção transformam as obras de infraestrutura, que
deveriam atender às necessidades do povo, em lucrativas fontes do propinoduto
que se instalou no país. O sobrepreço cobrado, às expensas do contribuinte,
alimenta não apenas o lucro do empreiteiro, mas é devolvido como benesse
indevida àqueles que têm o poder de determinar a obra e fiscalizá-la: todos
ganham, menos o povo, que recebe obras feitas não pela sua necessidade, mas
pela conveniência dos criminosos, e esses obras frequentemente são ainda de
qualidade duvidosa, porque se ganha mais usando menos material ou material de
qualidade inferior.
A
educação – meio por excelência de mobilidade social – é uma farsa. Um sistema
perverso que eliminou os estímulos ao aprendizado, cuja natureza é competitiva,
habitua estudantes ao esforço mínimo – ou ao nenhum esforço –, em nome da
necessidade de não se constranger, por meio de avaliações rigorosas, os menos
capacitados. Com isso a ignorância se expande e a realização de tarefas indispensáveis
aos estudos superiores e à vida profissional torna-se um trabalho hercúleo em
vez de rotina facilmente exequível.
A igualdade de oportunidades – que pode e deve
orientar as políticas do Estado – é substituída pelo ideal de uma pretensa
igualdade de resultados, que só se pode alcançar na medida em que esses sejam
dados de mão beijada, sem que o esforço individual faça qualquer diferença. Se
isso é inexequível no plano material, com mais forte razão é impossível na
edificação intelectual das pessoas, que se faz com a disponibilidade de
informação livre e generalizada e o esforço individual do estudo e da reflexão.
Eu
poderia ficar aqui toda a noite a desfiar um rosário de mazelas, mas não é
preciso, Vocês conhecem a realidade. Meu pedido, portanto, a vocês é muito
simples: oponham-se a ela.
Não,
não os conclamo a um discurso revolucionário que serve apenas para promover os
interesses espúrios de alguns líderes e justificar a procrastinação da
resolução de problemas reais. Eu os conclamo a serem honestos. Eu os conclamo a
agirem de acordo com a aguda consciência moral que lhes surge espontaneamente
quando se colocam no lugar do outro. Respeitar o outro é colocar os interesses
dele no mesmo patamar dos nossos e, caso a caso, verificar qual o mais urgente
e necessário, agindo de acordo com isso.
Sejam
competentes no exercício de suas funções. Não afirmem o que ignoram. Não
orientem sem ter certeza. Se ocuparem um cargo público, lembrem-se de que
serviço público é serviço ao público, que a parte que os procura ou que depende
de sua decisão ou encaminhamento é o cidadão, e o cidadão é o dono do Estado,
portanto, seu patrão.
Se
dedicados à advocacia, honrem a profissão, Não se prevaleçam das prerrogativas
profissionais para favorecer o crime nem para burlar o sistema de justiça. Seu
compromisso com o cliente não elide seu compromisso maior com a sociedade, que depende
da justiça para ser defendida.
E
sejam boas pessoas. Eduquem seus semelhantes pelo exemplo. Mantenham-se fieis a
suas promessas e não prometam o que não têm certeza de que podem cumprir. Sejam
bons pais e mães, bons maridos e esposas, bons filhos, irmãos e amigos, porque
isso sim é revolucionário em uma sociedade apodrecida que precisa que valores
sejam vividos e não proclamados de maneira hipócrita.
Pode
ser que seu lucro financeiro seja menor assim, mas a gratificação do respeito e
da admiração dos seus pares e dos seus parentes e amigos, junto com a
consideração invariável de toda gente é – creiam em mim – uma gratificação que
glorifica a alma.
Sejam,
portanto, como as flores de lótus e encham esta terra de beleza e fragrância,
Muito
obrigado.
Caro Alex,
ResponderExcluirseu discurso deveria ser repetido em todas as faculdades de Direito do Brasil, para que pudéssemos ter a esperança de que sucessivas floradas de flores de lótus afastassem, com seu perfume, esse odor nauseabundo que exala das relações políticas brasileiras e nos enchem de vergonha perante o resto do mundo.
Meu querido e amado, Professor Alex, sentir-me maravilhado ao ler este belíssimo texto de incrível reflexão, indagação. Estava eu aqui, assistindo uma entrevista do Professor Mario Sérgio Cortella, quando à minha mente, veio o senhor, minha maior e admirável referência em Filosofia contemporânea, que tive a honra de ser aluno. Imensa gratidão a ti, por ter através de suas aulas, me encaminhar para o caminho da Luz. Emocionei-me ao poder desfrutar deste inenarrável texto.
ResponderExcluirDo seu ex-aluno da Ruy Barbosa: Daniel Menezes.
Um forte abraço aqui do Brasil.
Gostaria de deixar aqui o link para assistir e ouvir um clipe do Pink Floyd - Another Brick In The Wall:
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=YR5ApYxkU-U
Lembrança imediata ao beber esse néctar - seu discurso de paraninfo - mais uma vez, gratidão por ser o fogo que ilumina o candeeiro para iluminar a estrada da vida.