A sensação de desconforto com as circunstâncias da vida não
exige qualquer esforço intelectual para ser percebida. Entretanto, desconforto
com a situação não implica necessariamente saber-se o que não se quer. Para que
se saiba o que não se quer, é preciso uma visão dos acontecimentos elaborada ao
ponto de se poder associar o desconforto com algo determinado que seja o que
causa, efetivamente, o desconforto. Essa elaboração nem sempre está presente no
raciocínio até mesmo de pessoas teoricamente bem-educadas e bem informadas.
Por outro lado, saber-se o que não se quer também não é a
mesma coisa que saber-se o que se quer. Para saber-se o que se quer é preciso
um grau mais avançado de elaboração, que comporta um modelo da realidade que a
replique com precisão suficiente para permitir inferências quanto ao futuro e,
como disse o inolvidável Lawrence Peter Yogi
Berra, ”é muito difícil fazer previsões, especialmente quanto ao futuro”.
Mas mesmo quem sabe o que quer nem sempre sabe como conseguir-se
aquilo que se quer, isso porque não basta que se tenha um modelo que replique a
realidade com sofisticação suficiente: é preciso, primeiro, que a realidade
efetivamente se comporte em conformidade com as previsões do modelo e, depois,
que o discernimento das variáveis estratégicas seja suficientemente lúcido.
Discernimento das variáveis estratégicas implica (embora não
se limite a) ponderar eficazmente a relação entre meios e fins, conhecer a
diferença entre recursos e meios, com capacidade de avaliar em que medida os
recursos disponíveis podem efetivamente converter-se em meios utilizáveis,
analisar pragmaticamente todos os atores envolvidos direta e indiretamente na
situação e, finalmente, mas não menos importante, ter o descortino dos
possíveis e prováveis cursos de ação dos atores interessados nas consequência
das providências adotadas à luz dos interesses que os inspiram. Não é por acaso
que os economistas usam nas suas previsões a expressão coeteris paribus como ressalva: a teoria prevê os efeitos das ações
se todas as outras coisas permanecerem
como estão, o que nunca acontece na realidade.
Esses exercícios demandam apreciável esforço intelectual.
Por isso, a modernidade, ao valorizar a razão como libertadora do indivíduo,
insistiu na necessidade da educação – a educação liberal – uma busca
enciclopédica de conhecimento para permitir que as pessoas, uma vez detentoras
das informações necessárias, possam construir sua própria opinião, isto é,
saber o que querem e como entendem, realisticamente, que isso deva ser
alcançado.
O ideal individualista da modernidade é, porém, de difícil
consecução, já que por mais enciclopédico que fosse o conhecimento dos
indivíduos ele seria sempre insuficiente, seja por causa de dificuldades de
toda ordem no processo educacional (intencionais e não intencionais), seja pela
impossibilidade individual de absorver-se todo o conhecimento. Mas é sobre isso
que se erigiu o ideal do governo do povo.
O ideal de governo do povo surgiu conforme dois modelos
fundamentais: o de Locke – o exercício da vontade por representação,
pressupondo-se que os representantes tenham as qualidades morais e cognitivas
necessárias, o que é tanto mais crível, no que concerne às cognitivas, pela
redução do escopo de atuação dessa vontade – e o de Rousseau – o povo,
governando diretamente, tudo pode e tudo sabe.
Na visão lockeana, valoriza-se a liberdade e, em troca, a
sociedade é desigual em termos de resultados. A igualdade desejável é uma
igualdade de oportunidades, de modo que seja possível a qualquer um, em tese,
ocupar, nessa sociedade, qualquer posição a que possa ascender. Na visão
rousseauniana, valoriza-se a igualdade material, impondo-se, pela vontade
geral, uma igualdade de resultados independentemente das aspirações ou dos
esforços individuais. Para Locke, no como alcançar os resultados desejados, a
propriedade privada desempenha papel fundamental; para Rousseau, ela é a fonte
de todos os males e precisa ser extirpada. Dessas raízes brotam as ideologias
contemporâneas.
A vantagem das ideologias é que elas desempenham o papel que
já foi, um dia, o da religião: o conforto espiritual da certeza de acolher uma
verdade absoluta a partir da qual tudo se pode e se deve explicar. Também como
as religiões, as ideologias podem ter uma versão contemplativa – um ideário ou
visão de mundo necessário para dar sentido à vida e a seu desenrolar – e uma
versão catequista ou militante – também um ideário ou visão de mundo que, por ter o monopólio da verdade,
justifica-se moralmente na tarefa de impor-se a toda gente e fundamentar as
relações de poder e as estruturas de dominação.
A desvantagem das ideologias é essa mesma característica. Por
serem detentoras de verdades absolutas, na hipótese de seus modelos serem
desmentidos pela realidade, preservam-se os modelos ou, pelo menos, os dogmas
que os originam e corrige-se a
realidade.
Desde, porém, que o pensamento ocidental foi apresentado ao
critério empírico de verdade isso traz algumas dificuldades. A verdade fundamentada
no critério empírico, isto é, no acordo com a experiência, independentemente das
crenças fundamentais que inspirem a visão de mundo, tem a paradoxal
circunstância de ser objetiva, mas não absoluta: ela é perfectível pelo próprio
evolver do conhecimento que, desenvolvendo novas tecnologias, permite realizarem-se
novos experimentos que sejam cruciais para a possível refutação da verdade
admitida até então.
Esses dois critérios de verdade, embora claramente
distintos, aparecem, na prática, misturados, de modo a iludir as pessoas quanto
à natureza da verdade que preconizam. Dentro de uma ideologia, podem-se
realizar procedimentos empíricos para determinação de algumas informações, sem
que isso afete o compromisso ideológico com os dogmas fundadores. Por outro
lado, muito do conhecimento acerca de uma ciência empírica pode ser adquirido
emprestando autoridade a narrativas que o sujeito conhecedor se dispensa de
verificar empiricamente por si mesmo – e o princípio da autoridade é de trivial
utilização quando está em pauta o critério ideológico de verdade. Desse modo, não
é a simples presença ou ausência de procedimentos empíricos no contexto de uma
visão de mundo o que a caracteriza definitivamente, mas, sim, a disponibilidade
dos dogmas fundamentais: se eles estão sujeitos a ser abandonados pela
possibilidade de um experimentum crucis
que os desminta, trata-se do critério empírico; se não estão, trata-se do
critério ideológico.
Percebe-se agora que as dificuldades para que um indivíduo
saiba o que não quer, o que quer e como quer que seja conseguido aquilo que reconhece
querer só se coloca em face do critério empírico de verdade. Quer dizer, se
removido o que não se quer cessa o desconforto, então era aquilo mesmo que não
se queria, mas se não cessa, não era. De modo semelhante, se conseguido o que
se quer não surge a satisfação esperada, então não era isso que realmente se
queria. Sobretudo, se o modo como se imagina satisfazer o que se quer não leva
a essa satisfação é porque esse não é o modo adequado a produzir os efeitos que
se esperam, e esse processo deve ser corrigido ou substituído por algum outro.
E essas decisões são temporalmente delimitadas, de modo que pressupostos
enganosos possam ser desmentidos pela temporalidade da experiência.
Nada disso é problema quando o critério de verdade admitido
é ideológico. As ideologias protegem-se dos contraexemplos por meio das
utopias. Elas validam “empiricamente” seus objetos e métodos afirmando que o
efeito futuro deles será algo geralmente desejável. Apenas não admitem limites
temporais precisos para sua realização, de modo que, verificada a falência
experimental de seus objetivos e processos, é sempre possível afirmar que os
resultados prometidos ainda não
ocorreram, mas ocorrerão em futuro talvez muito próximo, ou então, encontrarão
explicações ad hoc que justifiquem
por que procedimentos que tinham de dar
certo, não deram.
Para os adeptos de uma ideologia, a tranquilidade decorrente
da certeza de sua verdade é muito mais confortadora que a angústia do infiel
que se acha na obrigação de entender por que as coisas são como são,
independentemente de como as ideologias dizem que elas deveriam ser. Talvez por
isso, para o seguidor de uma ideologia, a solução dos problemas concretos,
objetivamente postos, torne-se menos importantes que a consagração das
lideranças. Como resolver os problemas é substituído pela questão de quem vai resolvê-los.
Em uma perspectiva lockeana, essa é a questão da escolha da
representação. Presume-se que haja representantes moralmente hígidos e cognitivamente
preparados para tratar das complexidades que escapam, na maior parte das vezes,
a qualquer do povo. Desse modo, empodera-se o governo para além do que seria
desejável em face da teoria original.
Na perspectiva roussoneana, a vontade geral onisciente e
totalitária tudo pode resolver. A questão é: como se explicita a vontade geral,
quem a traduz em enunciados?
Antônio Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista
Italiano, deu a essa pergunta uma resposta: o partido político, que ele
identifica como Príncipe Moderno. Com clareza meridiana, ele afirma que o
partido, ao desenvolver-se, “subverte todo o sistema de relações intelectuais e
morais” de modo que “todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como
virtuoso ou criminoso, somente na medida em que [...] serve ou para aumentar o
seu poder ou para opor-se a ele”. Desse modo, o partido substitui-se, nas
consciências, ao que foi o lugar da divindade, do âmbito da religiosidade, ou
do imperativo categórico kantiano, do âmbito da filosofia.
Nesse contexto, a figura do Legislador, preconizada por
Rousseau é importante. Apesar da imensa concessão ao romantismo que fundamenta
sua utopia, Rousseau reconhece que, se o povo, coletivamente, é onisciente e
onipotente, as pessoas individualmente não o são e, desse modo, surge a figura
do Legislador, uma espécie de profeta profano que aconselha o povo e lhe “explica”
a vontade geral que ele, Legislador, é capaz de contemplar. Nenhuma surpresa,
portanto, que o partido exaltado por Gramsci tenha rosto e nome e apareça o
Legislador como um Führer, como um Duce, como o Líder Genial dos Povos, como o
Grande Timoneiro, Comandante, Supremo, Pai do Pobres e outras denominações que
a imaginação dos comunicadores queria emprestar a esses salvadores da pátria e
de todas as pátrias.
O paradoxo de nossa realidade é que precisamos de fantasias
para concebê-la. A tese da soberania popular é a melhor coisa que se produziu
na história política de nossa civilização, mas o povo não existe, o que existe
são as pessoas com suas limitações, falibilidades, ignorância, ambições e
apetites. Estas são facilmente manipuladas por discursos mentirosos e montagens
publicitárias eficientes e produzem resultados que nada têm a ver com a
sabedoria inata que Roussseau via no povo e nem mesmo com a representação
competente que Locke preconizava.
O homem comum não está satisfeito, mas talvez nem mesmo
saiba explicar com o quê, senão pelo uso da expressão genérica com tudo isso que está aí. Não sabendo o
que não quer, tampouco é provável que saiba o que quer, no sentido de ter
objetivos práticos além de uma vaga melhora
do que aí está. Desse modo sua visão de como
alcançar o que quer é toldada pela imensidão e complexidade de problemas cujo
esboço ele nem descortina, porque sempre acreditou que sua tarefa fosse
escolher quem deveria resolvê-los.
Desse modo empoderou, em grande medida, incompetentes e
corruptos que se locupletaram pessoalmente e fortaleceram seus grupos políticos
de maneira imoral e criminosa, absolvidos desde logo pela visão gramsciana do
poder. Agora, pede-se às pessoas que façam o que nunca fizeram e assumam sua
responsabilidade com a vida social, que sempre foi vista como problema de alguém
mais. Não se trata de nomes. Mais um salvador da pátria nada haverá de salvar.
O problema é outro, mais grave e mais desalentador.
Arnold Toynbee dizia que os povos amadureciam pelo
sofrimento. Receio que muito sofrimento
seja ainda necessário.
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