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domingo, 10 de abril de 2016

Será que sabemos o que queremos?



A sensação de desconforto com as circunstâncias da vida não exige qualquer esforço intelectual para ser percebida. Entretanto, desconforto com a situação não implica necessariamente saber-se o que não se quer. Para que se saiba o que não se quer, é preciso uma visão dos acontecimentos elaborada ao ponto de se poder associar o desconforto com algo determinado que seja o que causa, efetivamente, o desconforto. Essa elaboração nem sempre está presente no raciocínio até mesmo de pessoas teoricamente bem-educadas e bem informadas.
Por outro lado, saber-se o que não se quer também não é a mesma coisa que saber-se o que se quer. Para saber-se o que se quer é preciso um grau mais avançado de elaboração, que comporta um modelo da realidade que a replique com precisão suficiente para permitir inferências quanto ao futuro e, como disse o inolvidável Lawrence Peter Yogi Berra, ”é muito difícil fazer previsões, especialmente quanto ao futuro”.
Mas mesmo quem sabe o que quer nem sempre sabe como conseguir-se aquilo que se quer, isso porque não basta que se tenha um modelo que replique a realidade com sofisticação suficiente: é preciso, primeiro, que a realidade efetivamente se comporte em conformidade com as previsões do modelo e, depois, que o discernimento das variáveis estratégicas seja suficientemente lúcido.
Discernimento das variáveis estratégicas implica (embora não se limite a) ponderar eficazmente a relação entre meios e fins, conhecer a diferença entre recursos e meios, com capacidade de avaliar em que medida os recursos disponíveis podem efetivamente converter-se em meios utilizáveis, analisar pragmaticamente todos os atores envolvidos direta e indiretamente na situação e, finalmente, mas não menos importante, ter o descortino dos possíveis e prováveis cursos de ação dos atores interessados nas consequência das providências adotadas à luz dos interesses que os inspiram. Não é por acaso que os economistas usam nas suas previsões a expressão coeteris paribus como ressalva: a teoria prevê os efeitos das ações se todas as outras coisas permanecerem como estão, o que nunca acontece na realidade.
Esses exercícios demandam apreciável esforço intelectual. Por isso, a modernidade, ao valorizar a razão como libertadora do indivíduo, insistiu na necessidade da educação – a educação liberal – uma busca enciclopédica de conhecimento para permitir que as pessoas, uma vez detentoras das informações necessárias, possam construir sua própria opinião, isto é, saber o que querem e como entendem, realisticamente, que isso deva ser alcançado.
O ideal individualista da modernidade é, porém, de difícil consecução, já que por mais enciclopédico que fosse o conhecimento dos indivíduos ele seria sempre insuficiente, seja por causa de dificuldades de toda ordem no processo educacional (intencionais e não intencionais), seja pela impossibilidade individual de absorver-se todo o conhecimento. Mas é sobre isso que se erigiu o ideal do governo do povo.
O ideal de governo do povo surgiu conforme dois modelos fundamentais: o de Locke – o exercício da vontade por representação, pressupondo-se que os representantes tenham as qualidades morais e cognitivas necessárias, o que é tanto mais crível, no que concerne às cognitivas, pela redução do escopo de atuação dessa vontade – e o de Rousseau – o povo, governando diretamente, tudo pode e tudo sabe.
Na visão lockeana, valoriza-se a liberdade e, em troca, a sociedade é desigual em termos de resultados. A igualdade desejável é uma igualdade de oportunidades, de modo que seja possível a qualquer um, em tese, ocupar, nessa sociedade, qualquer posição a que possa ascender. Na visão rousseauniana, valoriza-se a igualdade material, impondo-se, pela vontade geral, uma igualdade de resultados independentemente das aspirações ou dos esforços individuais. Para Locke, no como alcançar os resultados desejados, a propriedade privada desempenha papel fundamental; para Rousseau, ela é a fonte de todos os males e precisa ser extirpada. Dessas raízes brotam as ideologias contemporâneas.
A vantagem das ideologias é que elas desempenham o papel que já foi, um dia, o da religião: o conforto espiritual da certeza de acolher uma verdade absoluta a partir da qual tudo se pode e se deve explicar. Também como as religiões, as ideologias podem ter uma versão contemplativa – um ideário ou visão de mundo necessário para dar sentido à vida e a seu desenrolar – e uma versão catequista ou militante – também um ideário ou visão de mundo que, por ter o monopólio da verdade, justifica-se moralmente na tarefa de impor-se a toda gente e fundamentar as relações de poder e as estruturas de dominação.
A desvantagem das ideologias é essa mesma característica. Por serem detentoras de verdades absolutas, na hipótese de seus modelos serem desmentidos pela realidade, preservam-se os modelos ou, pelo menos, os dogmas que os originam e corrige-se a realidade.
Desde, porém, que o pensamento ocidental foi apresentado ao critério empírico de verdade isso traz algumas dificuldades. A verdade fundamentada no critério empírico, isto é, no acordo com a experiência, independentemente das crenças fundamentais que inspirem a visão de mundo, tem a paradoxal circunstância de ser objetiva, mas não absoluta: ela é perfectível pelo próprio evolver do conhecimento que, desenvolvendo novas tecnologias, permite realizarem-se novos experimentos que sejam cruciais para a possível refutação da verdade admitida até então.
Esses dois critérios de verdade, embora claramente distintos, aparecem, na prática, misturados, de modo a iludir as pessoas quanto à natureza da verdade que preconizam. Dentro de uma ideologia, podem-se realizar procedimentos empíricos para determinação de algumas informações, sem que isso afete o compromisso ideológico com os dogmas fundadores. Por outro lado, muito do conhecimento acerca de uma ciência empírica pode ser adquirido emprestando autoridade a narrativas que o sujeito conhecedor se dispensa de verificar empiricamente por si mesmo – e o princípio da autoridade é de trivial utilização quando está em pauta o critério ideológico de verdade. Desse modo, não é a simples presença ou ausência de procedimentos empíricos no contexto de uma visão de mundo o que a caracteriza definitivamente, mas, sim, a disponibilidade dos dogmas fundamentais: se eles estão sujeitos a ser abandonados pela possibilidade de um experimentum crucis que os desminta, trata-se do critério empírico; se não estão, trata-se do critério ideológico.
Percebe-se agora que as dificuldades para que um indivíduo saiba o que não quer, o que quer e como quer que seja conseguido aquilo que reconhece querer só se coloca em face do critério empírico de verdade. Quer dizer, se removido o que não se quer cessa o desconforto, então era aquilo mesmo que não se queria, mas se não cessa, não era. De modo semelhante, se conseguido o que se quer não surge a satisfação esperada, então não era isso que realmente se queria. Sobretudo, se o modo como se imagina satisfazer o que se quer não leva a essa satisfação é porque esse não é o modo adequado a produzir os efeitos que se esperam, e esse processo deve ser corrigido ou substituído por algum outro. E essas decisões são temporalmente delimitadas, de modo que pressupostos enganosos possam ser desmentidos pela temporalidade da experiência.
Nada disso é problema quando o critério de verdade admitido é ideológico. As ideologias protegem-se dos contraexemplos por meio das utopias. Elas validam “empiricamente” seus objetos e métodos afirmando que o efeito futuro deles será algo geralmente desejável. Apenas não admitem limites temporais precisos para sua realização, de modo que, verificada a falência experimental de seus objetivos e processos, é sempre possível afirmar que os resultados prometidos ainda não ocorreram, mas ocorrerão em futuro talvez muito próximo, ou então, encontrarão explicações ad hoc que justifiquem por que procedimentos que tinham de dar certo, não deram.
Para os adeptos de uma ideologia, a tranquilidade decorrente da certeza de sua verdade é muito mais confortadora que a angústia do infiel que se acha na obrigação de entender por que as coisas são como são, independentemente de como as ideologias dizem que elas deveriam ser. Talvez por isso, para o seguidor de uma ideologia, a solução dos problemas concretos, objetivamente postos, torne-se menos importantes que a consagração das lideranças. Como resolver os problemas é substituído pela questão de quem vai resolvê-los.
Em uma perspectiva lockeana, essa é a questão da escolha da representação. Presume-se que haja representantes moralmente hígidos e cognitivamente preparados para tratar das complexidades que escapam, na maior parte das vezes, a qualquer do povo. Desse modo, empodera-se o governo para além do que seria desejável em face da teoria original.
Na perspectiva roussoneana, a vontade geral onisciente e totalitária tudo pode resolver. A questão é: como se explicita a vontade geral, quem a traduz em enunciados?
Antônio Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, deu a essa pergunta uma resposta: o partido político, que ele identifica como Príncipe Moderno. Com clareza meridiana, ele afirma que o partido, ao desenvolver-se, “subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais” de modo que “todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que [...] serve ou para aumentar o seu poder ou para opor-se a ele”. Desse modo, o partido substitui-se, nas consciências, ao que foi o lugar da divindade, do âmbito da religiosidade, ou do imperativo categórico kantiano, do âmbito da filosofia.
Nesse contexto, a figura do Legislador, preconizada por Rousseau é importante. Apesar da imensa concessão ao romantismo que fundamenta sua utopia, Rousseau reconhece que, se o povo, coletivamente, é onisciente e onipotente, as pessoas individualmente não o são e, desse modo, surge a figura do Legislador, uma espécie de profeta profano que aconselha o povo e lhe “explica” a vontade geral que ele, Legislador, é capaz de contemplar. Nenhuma surpresa, portanto, que o partido exaltado por Gramsci tenha rosto e nome e apareça o Legislador como um Führer, como um Duce, como o Líder Genial dos Povos, como o Grande Timoneiro, Comandante, Supremo, Pai do Pobres e outras denominações que a imaginação dos comunicadores queria emprestar a esses salvadores da pátria e de todas as pátrias.
O paradoxo de nossa realidade é que precisamos de fantasias para concebê-la. A tese da soberania popular é a melhor coisa que se produziu na história política de nossa civilização, mas o povo não existe, o que existe são as pessoas com suas limitações, falibilidades, ignorância, ambições e apetites. Estas são facilmente manipuladas por discursos mentirosos e montagens publicitárias eficientes e produzem resultados que nada têm a ver com a sabedoria inata que Roussseau via no povo e nem mesmo com a representação competente que Locke preconizava.
O homem comum não está satisfeito, mas talvez nem mesmo saiba explicar com o quê, senão pelo uso da expressão genérica com tudo isso que está aí. Não sabendo o que não quer, tampouco é provável que saiba o que quer, no sentido de ter objetivos práticos além de uma vaga melhora do que aí está. Desse modo sua visão de como alcançar o que quer é toldada pela imensidão e complexidade de problemas cujo esboço ele nem descortina, porque sempre acreditou que sua tarefa fosse escolher quem deveria resolvê-los.
Desse modo empoderou, em grande medida, incompetentes e corruptos que se locupletaram pessoalmente e fortaleceram seus grupos políticos de maneira imoral e criminosa, absolvidos desde logo pela visão gramsciana do poder. Agora, pede-se às pessoas que façam o que nunca fizeram e assumam sua responsabilidade com a vida social, que sempre foi vista como problema de alguém mais. Não se trata de nomes. Mais um salvador da pátria nada haverá de salvar. O problema é outro, mais grave e mais desalentador.
Arnold Toynbee dizia que os povos amadureciam pelo sofrimento.  Receio que muito sofrimento seja ainda necessário.

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