Eureka

Visite meu site: http://www.eureka.com.pt

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Precisa-se de um bom partido

Não, não se trata de um anúncio classificado pessoal em que uma donzela casadoira procura um rapaz de bens profusos e aristocrática família.  Tampouco é o apelo de algum jovem promissor em busca de herdeira rica para dar o golpe do baú. Trata-se de declarações do sr. José Dirceu, discursando para cerca de cem militantes, segunda-feira, 13 de agosto, no Comitê dos Petroleiros, em Salvador. Esclarece o jornalista Vítor Rocha,* autor da reportagem, que, ao falar, ele "não havia percebido a presença da imprensa". Não tendo havido desmentido, tomo por autênticas as informações veiculadas.
Disse o sr. José Dirceu: "Nós temos que voltar a transformar o PT numa instituição política, para o que ele foi criado, e uma instituição política tem valores, tem programa".
Essas declarações seriam de estarrecer, se o estarrecimento não estivesse tão fora de moda quanto as donzelas casadoiras acima referidas, que, na era vitoriana, desmaiavam diante de qualquer acontecimento mais vívido. Entendo que a declaração foi feita para um grupo de simpatizantes, em reunião fechada. Talvez o ex-ministro não tivesse burilado a frase.  Por outro lado, as mesmas circunstâncias que desculpariam um descuido com a linguagem são propícias à franqueza. Vale a pena, portanto, analisar o dito, para que se revele o pensamento que o inspirou.
Essa análise impõe quatro perguntas: Por que o PT não é uma instituição política? Se não é uma instituição política, o que é o PT?  Por que o PT, que foi criado para ser uma instituição política, deixou de sê-lo? E por que, agora, é preciso que volte a ser aquilo para que foi criado?
A primeira questão parece ter sido respondida pelo sr.José Dirceu na própria enunciação que se examina: o PT não é uma instituição política porque ter valores, ter programa são condições necessárias das instituições  políticas. O corolário desta afirmação -- afirmado por Dirceu, não por mim -- é que o PT não tem valores, não tem programa.
Dizer-se que o partido que abriga em seus quadros o presidente da República não tem valores, não tem programa, é de arrepiar os cabelos (horresco referens, diriam os antigos, repetindo Virgílio).  Entretanto, repito, quem diz isso não sou eu, que não conheço a intimidade do PT (embora tenha sido amigo pessoal de alguns dos intelectuais que o partejaram em sua fundação).  Quem diz isso é José Dirceu, que a conhece muito bem.
Mas vamos adiante. Se o PT não é uma instituição política, o que ele é?
A frase de Dirceu não ajuda muito; ele nada diz a este respeito. Na opinião fundamentada do Procurador Geral da República que ofereceu denúncia contra 40 ilustres personalidades, entre elas José Dirceu, no caso do mensalão, denúncia acatada pelo ministro Joaquim Barbosa, referendado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, a resposta está em um epíteto desagradável: organização criminosa. Sem pretender discutir argumentos jurídicos já examinados por mais doutos do que eu, peço vênia para discordar. A análise cuidadosa da frase de José Dirceu me revela que se faltam valores, a hipótese da criminalidade não pode ser liminarmente descartada, mas, se faltam programas, certamente não se trata de  organização. Se não é uma organização é, possivelmente, uma desorganização e não pode haver uma desorganização criminosa, porque, pelo simples fato de ser uma desorganização, não se pode falar de uma ação unitária e integrada de todos os seus membros. 
Juntando José Dirceu com o Procurador Geral, parece que se trata de uma desorganização, dentro da qual há ou houve membros que agiram de modo possivelmente delituoso, ensejando uma denúncia aceita pelo Supremo, que os está processando na forma da lei. Talvez por isso, o homem que foi apontado como alma danada do mensalão ressinta-se da ausência de valores.
Mas o que terá feito com que o PT, que, nas palavras de Dirceu, foi criado para ser uma instituição política, não o seja mais? A pista para a resposta está em outra de suas frases: "Lula é duas vezes maior que o PT". 
Na Bahia, há uma saborosa expressão -- espaçoso -- que descreve pessoas cujos atos, bem intencionados que sejam, afetam, constrangem, incomodam os que estão por perto.  O "espaçoso" é um indivíduo que transborda de seu próprio espaço para ocupar, às vezes inadvertidamente, o espaço alheio, coibindo a iniciativa do outro, perturbando seu equilíbrio, alterando, a sua revelia, o curso de ação em que estão todos envolvidos.  Ora, dizer que "Lula é duas vezes maior do que o PT" implica reconhecer em Lula um "espaçoso" político e nenhuma instituição política sobrevive ao personalismo de um líder que seja duas vezes maior do que ela. Ela ainda poderá ser um mecanismo de ação, o braço político de uma milícia, mas não mais uma instituição política viva e originadora de seu própio agir.
O descompromisso de Lula com o programa do PT criou, no começo de seu governo, incidente resultante na expulsão ou desfiliação de políticos que desejavam manter-se fieis a suas origens --  e Dirceu sabe disso, porque, à época, era todo-poderoso no governo e no partido. Este modo de proceder acaba com qualquer identidade programática. Não sei se raciocínio análogo explica o desaparecimento dos valores, e não quero especular; tento, apenas, compreender, em profundidade, o conteúdo da manifestação de José Dirceu.
Entendido, então, o que é o PT e de que forma ele se tornou assim, por que precisa voltar a ser aquilo que jamais deveria ter deixado de ser?
O esclarecimento de José Dirceu é chocantemente franco: "A Dilma não é uma liderança que tenha uma grande expressão popular, eleitoral, uma raiz histórica no País como o Lula teve, como o Brizola, o Arraes, e como [...] o próprio ACM que [...] era uma liderança popular. [...] A eleição da Dilma é mais importante do que a eleição do Lula, porque é a eleição do projeto político, do nosso acúmulo de 30 anos, porque a Dilma não se representa". (Grifei.)
Essas palavras, ditas por quem as disse, merecem um comentário de muitas páginas. Mesmo tentando  restringir-me, raciocinando de modo bem esquemático, não há como ser breve.
Afirma Dirceu que Lula é uma liderança popular, como foram Brizola, Arraes e ACM. Logo a seguir, diz que "a Dilma não se representa". Parece concluir-se que Lula "se representa" tal qual Brizola, Arraes e ACM, antes dele, "se representavam".  O que será, neste contexto, representar-se?
Na teoria democrática, os eleitos representam seus eleitores, não a si próprios. Se a frase fosse do presidente Lula, os ouvintes ou leitores poderiam atribuir a estranha construção à imprecisão dos conhecimentos presidenciais em relação à teoria política (por contraste com sua mestria no manejo da política partidária). No caso do ex-ministro, não se aplica essa suposição. José Dirceu é formado em direito e seu conhecimento da práxis política é amplo e robusto, tanto prática quanto teoricamente. Então, a construção usada não decorre de um lapso; ela tem significado. Qual será?
As "lideranças populares" a que Dirceu se refere foram ou são políticos que desfrutaram ou desfrutam de um grupo expressivo de seguidores prontos para aplaudir e acatar incondicionalmente seu líder. Trata-se de uma adesão afetiva, um "ismo", feito antes de paixão que de ponderação.
Embora seja difícil distinguir-se uma coisa da outra pela aparência, há uma diferença fundamental entre a unidade de pensamento decorrente de uma identificação afetiva -- o que se chama tecnicamente homonoia -- e unidade semelhante que deriva do convencimento produzido pela troca de argumentos racionais, aceitos, apesar da atitude crítica de quem os recebe, pelo seu imperativo lógico  -- o que se chama tecnicamente consenso.
Os líderes que estão à frente da homonoia (que, na verdade, eles promovem) não verbalizam a vontade de seus seguidores; eles os persuadem de que a vontade dele, o líder, é, incondicionalmente, a vontade dos seguidores.  Os líderes que estão à frente de um consenso, verbalizam uma síntese da vontade de seus seguidores, seja porque dela partilham, seja porque entendem que é o que lhes compete fazer na função de representar.  Então, os líderes que verbalizam o consenso -- a forma de liderança preconizada pela teoria da democracia representativa -- representam seus liderados, não a si próprios.  Os líderes que verbalizam a homonoia, na verdade "se representam", embora aparentem representar seus liderados, porque a vontade dos liderados foi incondicionalmente alienada ao líder, que a corporifica.
Ora, Dilma não se representa porque ela não é uma liderança que polarize uma homonoia  -- como é Lula e como foram Brizola, Arraes e ACM.  Mas ela não é, tampouco, a representante de um consenso; é, antes de mais nada, a destinatária da ratificação encomendada por Lula a seus seguidores. Portanto ela nem se representa nem representa seu eleitorado.
A quem representa ela então? 
Para José Dirceu, ela representa "o projeto político, [o] nosso acúmulo de 30 anos".
A proposta de Dirceu parece clara:  é preciso ressuscitar o PT como instituição política para que Dilma o represente. A questão é: esse "projeto político" tem sua unidade calcada em uma homonoia que Dilma inspira ou ele determina um consenso que ela deve representar? 
Terminaria por aí a análise não fosse o suspeitíssimo projeto de hegemonia que o grupo de Dirceu perseguiu em seu partido, tendo Lula como bandeira.  Para alguns, Dirceu é a verdadeira cabeça pensante desse grupo.  A ser verdade essa interpretação, a semi democrática hipótese de Dilma representar seu partido restaurado (a verdadeira hipótese democrática é que ela represente politicamente seu eleitorado e institucionalmente todo o povo) acabaria significando sua tutela pelo grupo hegemônico que dominasse o partido.
Em termos de história partidária isso pode parecer factível, e talvez seja mesmo.  Mas há complicadores.  Lula, tendo provado o néctar do Olimpo político, nacional e internacional, admitirá ter um papel secundário no controle da situação, ele que é "duas vezes maior que o PT"?  Dilma será submissa à orientação de Dirceu em nome da supremacia passada do ex-ministro, quando se sabe que a política partidária é feita de expectativas, não de gratidões?
Embora não negligencie a capacidade de articulador e planejador do Sr. José Dirceu, sou um otimista: acredito que a jovem democracia brasileira veio para ficar.  Além disso, aposto no temperamento de D. Dilma e no seu descortino de tecnocrata fraturando seu verniz ideológico.  Acho muito difícil que D. Dilma seja, ao longo de seu mandato, pau mandado de Dirceu ou de Lula. Ela pode até tentar ser submissa, mas não acredito que vá conseguir. 
Se realmente o PT reestruturar-se como uma instituição política sob o domínio de um grupo hegemônico que, em nome do partido, pretenda tutelar a presidenta, creio que haverá turbulência.  E não é disto que o Brasil precisa.  O Brasil precisa de um bom partido que exerça a função de governo democraticamente, e  de pelo menos um outro bom partido que faça uma oposição firme e consciente, que se oponha democraticamente. É disto que se precisa, de um bom partido.  

*Reportagem publicada no jornal A Tarde, 14/09/2010, p. B10. Apesar da igualdade de sobrenomes o repórter não é parente e nem mesmo conhecido do autor deste comentário.