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domingo, 23 de junho de 2013

A rotação diferencial da Galáxia, o Buda e os movimentos de rua no Brasil

Há pouco mais de 50 anos, descobri, muito jovem ainda, que havia um fenômeno chamado rotação diferencial da Galáxia. O empenho que tive em entender o de que se tratava teve um efeito colateral que nunca pude determinar se foi, para mim, fonte de consolo ou de desencanto: percebi que se a Terra inteira fosse aniquilada o efeito desse cataclismo na rotação diferencial da Galáxia seria nulo.  O efeito colateral em minha mente foi avassalador: convenci-me de que o fenômeno humano é irrelevante em escala cósmica.
Um ou dois anos depois, li, avidamente como lia tudo que me caía nas mãos, o Sermão de Benares – o primeiro sermão do Buda – em cuja parte introdutória ele diz (cito de memória): “o amor compassivo do Tathagatha distribui-se uniformemente por todos os seres do Universo, por isso eles o chamam Pai”.  Mesmo hoje, não tenho palavras precisas para descrever o que senti – e ainda sinto – diante dessa afirmativa, mas tive e tenho a certeza de que ela foi uma revelação: minha meta na vida seria (como é) poder algum dia fazer essa mesma declaração a meu próprio respeito.
Então, operou-se curiosa bipartição em mim. Por um lado, os fenômenos planetários e, especialmente, humanos, deixavam de ter relevância em minha mente. Por outro lado, o cultivo de um amor compassivo por todos os seres tornava-se o imperativo moral mais forte a conduzir meu julgamento do mérito das ações e a Nêmesis permanente a vergastar meus afastamentos desse ideal que fizera meu.
À medida que a convivência com pessoas de todos os tipos foi-se acrescentando às minhas experiências juvenis, o amor compassivo tornou-se nitidamente superior, como motor da existência, à irrelevância da humanidade.  O ideal búdico sempre se me afigurou mandatório para mim, mas, quanto às ações dos outros, aplicava-se a eles, de minha parte, um certo ceticismo blasé, vista a desimportância, afinal, do fenômeno humano. Contraditório, talvez, mas quem repudia a contradição é a lógica, não a realidade.
Um terceiro elemento da minha precoce formação foi, tanto quanto me parece, inato: uma grande facilidade de perceber imediatamente os múltiplos aspectos da cada situação; uma percepção “a sentimento” de algo que só iria estudar intelectualmente muito tempo depois: os interesses ocultos por trás dos valores declarados.
O (triste) resultado disso foi que o agudo sentimento da experiência do Outro misturava-se com profundo desencanto, face à hipocrisia humana, em relação a quaisquer movimentos “salvadores da humanidade”, religiosos ou profanos. Esse desencanto não se transformou em desespero – estou falando da minha adolescência! – porque, afinal, como havia “descoberto”, o fenômeno humano nada significava em escala cósmica.
Tornei-me capaz de apaixonar-me por pessoas, mas nunca por movimentos, seja porque não encontrasse nenhum em que os valores proclamados não escondessem interesses inconfessáveis de indivíduos, seja porque jamais tolerei disciplina de consciência. Posso, certamente, adaptar, em certa medida, minha conduta à conduta de outras pessoas com quem deva trabalhar para a realização de um propósito comum, mas não conseguia – e ainda não consigo – alienar meu julgamento a uma autoridade maior: jamais consegui ser liderado em termos de limites à minha curiosidade e do julgamento de valor que faço acerca do que imagino conhecer. Sempre fui – e continuo sendo – o que nos Estados Unidos se chama um maverick, termo pejorativo, colhido do nome dos cavalos que não andam em bando, para designar o solitário que não submete sua opinião à orientação de partidos, igrejas ou corporações.
Não me vanglorio disso. Ao contrário, a solidão é pesada, muito pesada. Participo do que acho que deva participar (muito pouca coisa, na verdade) sem paixão e com intenso senso crítico, de modo que me retiro tão logo o rumo das coisas ou das pessoas se afasta do que entendo ser conveniente.
A experiência da vida, a reflexão e o cultivo acadêmico me levaram a praticar um outro exercício – este fascinante! Em vez de repudiar in limine o pensamento de quem quer que manifeste ideias – não importa se elas me despertam concordância ou discordância – sinto-me intelectualmente obrigado a raciocinar dentro do paradigma ideológico ou teórico utilizado pelo meu interlocutor, para verificar a exatidão de seu pensamento no contexto de seu próprio referencial e não em outro qualquer que eu porventura considerasse preferível. É claro que tenho minhas convicções provisórias, mas não acho útil confrontar as convicções de outrem com as minhas, para fins de avaliação de seu pensamento. O que considero valer a pena é entendê-las como ele as entende (ou deveria entendê-las em seus próprios termos) e, depois disso, sim, comparar o mérito delas com o mérito de meu pensamento anterior ao conhecimento assim adquirido. Anos depois de ter tornado habitual essa prática, descobri que o filósofo Espinosa procurava fazer a mesma coisa, e senti-me em boa companhia.
A expressão “convicções provisórias” decorre da certeza de que não conheço a verdade (e, para esse efeito, nenhuma outra pessoa a conhece), se é que “verdade” é “alguma coisa” que se conheça. Não desejo tornar este texto filosófico, no sentido especializado, mas quero afirmar que vejo, de preferência, a “verdade” como hipóstase dos critérios que legitimam a aplicação do predicado ”é verdadeiro”. Esses critérios – verifica-se – alteram-se ao longo da história, de modo que as convicções, que representam a intuição dessa verdade cambiante, mudam no tempo e com a quantidade e o tipo de informações de que dispõe o grupo social em que o indivíduo se reconhece inserido.
Tudo isso é dito para explicar o que sinto diante do que acontece neste mês de junho no Brasil.
O que me empolga no que estou vendo é exatamente o que muitos deploram: a dificuldade (que espero seja, de fato, impossibilidade) de uma força organizada controlar o movimento das ruas. É evidente que tendências políticas estruturadas, de todos os matizes, tentam e tentarão tirar vantagem dessa súbita energia popular.
Depois dos primeiros dias, vejo, no meio que possibilitou esse movimento aparentemente caótico – a Internet –, o contra ataque dos tradicionais controladores da massa, seja para desqualificar a espontaneidade, seja para inculcar aos manifestantes seus próprios objetivos.  Isso é natural e deveria ser esperado. Entretanto – e tomara que não me engane – creio que esse movimento não é da massa, é do povo. Há sutil diferença entre esses termos, embora possa ser aplicado ao mesmo conjunto de pessoas. A massa é manipulada e repercute ideias de uma liderança restrita, frequentemente de natureza autoritária; o povo é capaz de despertar ideias e sentimentos espontâneos, que podem ser desagradáveis a algumas lideranças e, talvez, a todas.
Alguns alertam para o perigo de que o movimento apartidário seja antipartidário,  alegadamente por medo de que dele se aproveitem candidatos a autócratas, mas, talvez, apenas porque isso tira de seu próprio partido o protagonismo. Alguns criticam a falta de reivindicações específicas do movimento ou, por outro lado, a pluralidade de reivindicações que tornariam esse mesmo movimento politicamente estéril.
Quero dizer que é exatamente isso que me atrai a atenção. Esse movimento não é um movimento de esquerda no sentido clássico, mas também não é um movimento de direita. Percebo isso menos pela retórica dos manifestantes e mais pela insatisfação dos ideólogos das duas extremidades com uma prática que eles não controlam. Se fosse um movimento de esquerda ou de direita, eu voltaria a cogitar da rotação diferencial da Galáxia e a aproveitar mais um exercício da estupidez humana pra por à prova meus frágeis progressos no sentido de expandir meu amor compassivo. Mas não é. Acredito estar vendo um fenômeno novo que não se descreve nem se compreende pelos manuais ideológicos do tempo da Guerra Fria. Acredito que não é apenas pela revolução informacional que um movimento desses se tornou possível, mas pelo surgimento de outra mentalidade, gerada por processos neuronais que a tecnologia contemporânea ajuda a desenvolver. Por outro lado, tal qual tem acontecido ao longo da história, o Brasil ainda não faz a sua; repercute uma onda internacional. Então, do mesmo modo que o quadro internacional desafia a geopolítica que conheci ao longo da vida, creio que o que aqui acontece desafia as técnicas de análise que foram úteis no passado.
Não sei o que vai acontecer. Não acredito na analogia simplista que supõe que se esteja fazendo desordem para atrair uma ditadura. Creio, sim, que estamos diante de um quadro revolucionário, mas não em termos da velha revolução socialista que a esquerda do começo do século XX imaginava. Creio que, assim como a revolução burguesa do século XVIII (revolução americana e revolução francesa) substituiu a soberania unipessoal do rei pela soberania impessoal do povo, estamos vivendo uma nova transformação no conceito de soberania que afetará não apenas as relações internacionais, mas, também, as relações interpessoais e as formas de dominação (que, desculpem, sempre existiram e sempre existirão).

Não sei se verei o final desse processo, ou, pelo menos, sua estabilização em um patamar intermediário. Afinal, sou velho. A rotação diferencial da Galáxia e uma análise realista do tempo que me resta talvez me aconselhem a não me empolgar tanto com esses assuntos e cuidar mais da tentativa, ainda não tão bem sucedida assim, de expandir meu amor compassivo.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Democracia sim, ditadura não.

A primeira pergunta que o estrategista tem de se fazer é: quem sou eu; quem é meu adversário? Não, não houve equívoco de português. Essas não são duas perguntas, é a forma composta de uma só. Estrategicamente, quem sou eu depende de quem seja meu adversário e quem é meu adversário depende de quem seja eu.
Temos muitas identidades: a identidade real (aquela que temos para nós), a identidade virtual (a que os outros nos atribuem), a identidade jurídica (que é cartorialmente reconhecida no sistema social) e a identidade pragmática (a que deriva de nossas ações e do nosso modo de agir). No conjunto, elas compõem nossa representação social – o que somos como seres sociais. A identidade estratégica é a representação social de um ator conforme determinada por um antagonismo, isto é, a identidade do ator como combatente contra outro ator ou conjunto de atores.
Embora haja atores sociais referidos por denominações genéricas, que podem ser substantivos comuns ou nomes próprios, e os chamemos de atores porque a eles atribuamos um agir específico, determinado e voluntário, só pessoas praticam ações. O governo nada faz; quem faz é D. Dilma, o ministro Mercadante, a ministra Gleisi etc. O Senado nada diz; quem diz é o senador Taques, o senador Buarque, o senador Calheiros (com muitas desculpas por usar os nomes dos três na mesma frase) etc. A autoridade do governo, não se confunde com a de D. Dilma, nem a autoridade do Senado se confunde com a do senador  Calheiros; entretanto essas personalidades podem agir, respectivamente, em nome do governo ou do Senado, mas suas ação são sempre ações das pessoas que elas são, e não há ações que não sejam de pessoas.
Juridicamente, essa distinção pode ser ou não relevante; estrategicamente é sempre relevante, embora muitas pessoas não saibam disso. É relevante porque a identidade estratégica do ator não depende apenas de sua definição jurídica, mas tem a ver com sua identidade pragmática e a caracterização do modo de agir do ator complexo envolve quem pratica tais ou quais ações, em nome dele ou em seu próprio nome, mas pertencendo a ele.
Na retórica política, por astúcia ou ingenuidade, costuma-se utilizar nomes pomposos e comovedores para designar atores cujas identidades são nebulosas: o povo, as elites, o sistema, a mídia, o partido, a igreja e assim por diante. Mas quem é o povo? Quem é o sistema? Quem são as elites? Etc. Em geral, a resposta vem fácil, rápida e fulminante. Ela caracteriza uma parcela desses atores de maneira igualmente fluida e indefinida, mas apresentada na feição que interessa a quem esteja respondendo. O povo é a gente sofrida e trabalhadora. As elites são aqueles que se locupletam com o dinheiro do povo. O sistema é essa engrenagem perversa que mantém a injustiça. E pode muito bem acontecer que quem assim responde seja alguém que não trabalha, se locuplete com o dinheiro do povo e faça isso graças à engrenagem perversa que mantém a injustiça – tudo aquilo de que essa hipotética pessoa se deseja distanciar estrategicamente ao dar semelhante resposta. Coisas como tais, nada acrescentam, mas despertam as emoções de quem esteja indagando na linha do interesse de quem assim “define” os atores que não foram, afinal, definidos. Talvez a reposta possa ser até mais restritiva na sua imprecisão: o povo é você; as elites (ou  sistema) são eles! É bonito, mas continua inespecífico. Um indivíduo não é o povo e “eles” pode ser qualquer um.
Percebe-se que esse modo de falar, além do apelo que faça à emoção do destinatário, tem uma característica fundamental: impede a comprovação da verdade, mediante o confronto com dados factuais, de qualquer afirmativa que se faça usando esse tipo de termos.
Meu eventual leitor poderia alegar que esta afirmativa, sim, é factualmente falsa, dando como exemplo uma frase do tipo “os políticos são corruptos” confrontada com numerosíssimos caso de corrupção de políticos. Eu teria de explicar que, no sentido lógico, os numerosíssimos casos de corrupção de políticos provam, apenas, que políticos corruptos ou, até, que numerosos políticos são corruptos, mas não prova que os políticos (isto é, todos os políticos, sem exceção) sejam corruptos.  Isto, que pode parecer uma filigrana acadêmica, tem fortes implicações. Se fosse verdade que os políticos são corruptos, a consequência lógica seria a desqualificação necessária da democracia representativa em benefício de uma ditadura iluminada, seja teocrática, seja profana.
A demonização de atores complexos serve, apenas, para colher apoio a sua destruição, o que atende a interesses de outros atores complexos em busca da hegemonia. É preciso, portanto, que se questione que legitimidade têm os atores em busca da hegemonia para que ela lhes fosse concedida. Como se prova que a supremacia inconteste de tais atores representaria, para usar as palavras de D. Pedro I, “o bem do povo e a felicidade geral da nação”?
A resposta a esse incômodo questionamento viria, possivelmente em uma peroração na qual expressões como “compromisso histórico”, “lutas históricas”  e “povo” seriam abundantemente empregadas para produzir um discurso cuja verdade em termos factuais continuaria a ser impossível de verificar-se.
O equilíbrio democrático é dinâmico. Ele não pressupõe a supremacia incontrastável nem a destruição de qualquer ator que represente interesses coletivos, mas coloca-se, necessariamente, em um espaço de negociação livre no qual a natureza desses interesses seja explicitada e sua posição na pauta geral dos interesses sociais seja situada, ainda que temporariamente, até que nova correlação de forças se manifeste. A natureza do regime democrático não é solucionar os problemas por atos de uma autoridade absoluta; é justamente manter em atividade esse espaço de negociação livre, de modo que a sentença de morte que hoje parece justa possa ser revogada amanhã quando sua injustiça parecer igualmente gritante.
A democracia é medíocre e lenta, e nisso reside sua maravilha. Ela pode errar e corrigir o erro. Depois, pode descobrir que errara ao corrigir, e refazer o que fora desfeito. As ditaduras não. Sejam elas de direita ou de esquerda, os ditadores, ou alguém por eles, são infalíveis. Eles conhecem a verdade e anteveem o futuro, e quem não percebe isso ou é um ignorante que precisa ser corrigido ou é um malicioso que precisa ser punido. Portanto, jamais a opinião discordante (chamada, então, de dissidente) deve ser ouvida e ponderada. Na democracia, quem discorda é opositor, e só deve ser combatido com argumentos, não obstante os eventuais donos do poder se sintam irritados demais para argumentar. Nas ditaduras, os dissidentes são apresentados e perseguidos como criminosos contra o Estado e contra o povo, enquanto, na verdade, são, apenas, opositores ao agir de pessoas que se arrogam a propriedade exclusiva da verdade apenas porque, em suas crenças pessoais, o sejam inequivocamente.
Pelos motivos acima expostos, sou um democrata. Posso viver sob uma ditadura, e até já vivi, mas acredito nos valores da democracia. E um dos principais valores da democracia é responsabilidade política dos agentes públicos. Não quero saber de “os políticos”, “o partido” ou “o sistema”. Quero saber quais políticos, quem no partido ou o quê no sistema. Não quero grupos demonizados, como não quero grupos blindados contra a crítica. Posso ter simpatias e antipatias, como os demais também as têm e podem ter, mas na hora de decidir cursos e ação, é preciso agir como estrategista, e o estrategista tem, a lhe dirigir o julgamento, não seus próprios gostos, mas os propósitos cuja realização deve avaliar. Em especial, o estrategista político democrático nunca pode perder de vista que se o espaço de negociação livre for fechado à ação política, acaba-se a democracia e, sem ela, quaisquer ganhos passam a depender da vontade do poderoso do dia.
A democracia, por si só, não é a solução mágica de todos os problemas. Por outro lado, é possível receber benesses em uma ditadura. O que não é possível na ditadura é ter direitos. Eu sei que não existem soluções miraculosas e não quero benesses, eu quero direitos, e direitos para todos. Isto só é possível dentro de uma ordem jurídica que, se insatisfatória, deve ser aperfeiçoada, nunca abolida.

Portanto, se me disserem que é preciso destruir isso ou aquilo, eu perguntarei: Destruir? Mas destruir o quê, exatamente? Punir? Mas punir a quem, exatamente? E se me sugerirem um slogan como “todo poder ao povo” ou a qualquer outro coletivo que nada significa, eu direi que sou contra, sem mesmo perguntar quem é, neste caso, o “povo”, porque qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos que seja apresentado em resposta certamente não merece todo o poder. O poder não precisa ser dado ao povo. Na democracia, ele já o tem. Apenas, no caso brasileiro, parece que só agora ele está descobrindo isso.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Tem peru na roda!

Não sei se a expressão ainda está em uso, mas, antigamente, “peru” era o indivíduo que, nos jogos carteados (e, por extensão, em toda e qualquer outra atividade), punha-se de parte, olhando os jogadores sentados à mesa em disposição circular: a roda do jogo. Desse modo, o peru poderia ver a carta de algum ou alguns dos participantes, o que o colocaria em condições de, por meios habilidosos, transmitir essa informação a adversários. Estes, assim, ganhavam significativa e desonesta vantagem. Tal acepção do termo "peru" estendeu-se com o verbo “peruar”, de uso coloquial, significando intrometer-se; forçar participação, em geral indesejada.
O peru dos jogos é um espião, e é sempre difícil determinar até que ponto espiões só espiam ou se interferem de outro modo nas situações de que participam. Nos movimentos políticos, frequentemente há perus que interferem, e interferem poderosamente, com tanto mais credibilidade quanto se revelam os mais apaixonados cultores da causa defendia.
Em 1964, no Brasil, a tensão político-social crescia cotidianamente. O povo alheio aos entrechoques políticos sofria com greves cotidianas de tudo quanto era serviço e assustava-se com a retórica retumbante dos próceres da esquerda defendendo as “reformas de base”, que o homem comum não sabia exatamente em que iriam afetar sua vida. Sabia, sim, porque isso lhe era dito pelos mais respeitáveis formadores de opinião, que estava exposto ao “perigo comunista”, cujo objetivo seria proibir-lhe a adoração divina e desfazer-lhe a família, além de submetê-lo a um estado policial opressor. Esta última ameaça era bem crível, porque assim era na União Soviética e nos seus Estados-satélites do leste europeu (embora o fosse, também, na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar e, de modo geral, em todo e qualquer regime ditatorial mantido pela força militar). Então, o povo das grandes cidades pedia a Deus que o livrasse do perigo comunista e, em São Paulo, chegou a produzir-se a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade, que reuniu cerca de meio milhão de pessoas, em março de 1964.
Se Deus resolvesse atender ao pedido desse povo, teria de ser por meio dos militares.
A estrutura das forças armadas brasileiras em 1964 era muito diferente da atual. Hoje um oficial-general não pode ficar mais de quatro anos no mesmo posto nem mais de 12 no generalato. No passado, havia generais bem mais antigos, que se tinham tornado líderes militares e líderes políticos dentro da força armada.  Exatamente por saber como isso funcionava, o marechal Umberto de Alencar Castelo Branco, chegando ao poder, alterou a lei de promoções dos oficiais-generais no sentido de produzir-se uma força mais profissional e menos politizada.
Havia, portanto, também, em 1964, inquietação político-militar, com genreais de direita e de esquerda, além daqueles que se aferravam aos ditames fundamentais de sua carreira: hierarquia e disciplina.
Foi assim que o golpe de 64 se deflagrou. Um certo cabo Anselmo (José Anselmo dos Santos), praça da Marinha de Guerra, começou um movimento para-sindical entre cabos e sargentos da força naval. Esse movimento forçou uma ultrapassagem de limites que punha em risco a estabilidade hierárquica e disciplinar da força, com as bênção de alguns oficiais, como o vice-almirante Cândido da Costa Aragão, comandante do Corpo de Fuzileiros Navais.  Quando se vislumbrou o apoio do presidente da República a essas atividades, o governo passou a ser visto como risco para a estabilidade militar e o golpe amadureceu. Anos mais tarde, divulgou-se que o aguerrido cabo Anselmo fora agente da CIA. Na verdade, preso depois do golpe de 64, foi expulso da Marinha, mas “fugiu” e refugiou-se me Cuba, tendo-se revelado, posteriormente, destacado colaborador do sistema estatal brasileiro de repressão aos movimentos de guerrilha que se desenvolveram nos anos de 1970.
É preciso que se diga, para benefício das mentes simples, que o golpe de 64 não foi comandado desde Washington. Embora atendesse aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos e tivesse a plena simpatia do governo americano, simpatia que poderia ter-se convertido em apoio inclusive militar, conforme assegurava o embaixador Lincoln Gordon, esse apoio não foi aceito nem usado pelos conspiradores. Eles tinham, interna corporis, suficientes razões e suficiente indignação para por cobro a uma situação que, de seu ponto de vista, era calamitosa.
Não posso afirmar, por não saber de fonte segura, se os hesitantes líderes do golpe de 64 sabiam, à época, da vinculação externa de cabo Anselmo. Acredito que não sabiam. Mas tenho certeza de que a agitação naval os assustava mais que as reformas de base.  Afinal, naquela época, generais não eram usualmente latifundiários nem investidores no mercado de capitais. Mas as estrepolias do cabo Anselmo e seus colegas mexiam com algo que lhes interessava bem de perto: o comando e controle de sua força.
Então, quando, em movimento aparentemente atabalhoado, um general de hierarquia inferior, Olímpio Mourão Filho, botou a tropa na rua, o jeito da cúpula militar foi ir junto e derrubar o governo. É verdade que Mourão Filho fora alegadamente participante de outra jogada política que dera pretexto ao golpe de Getúlio Vargas em 1937. Ele foi acusado de ser o autor ou um dos autores do Plano Cohen, uma contrafação apresentada como indício veemente de um iminente golpe comunista, e Vargas, diante das evidências e na defesa da ordem e proteção dos cidadãos, proclamou o Estado Novo, outorgando uma Carta que lhe dava poderes ditatoriais. Curiosamente, o autor intelectual dessa Carta, o jurista Francisco Campos, foi o mesmo que, em 1964, orientou a redação do Ato Institucional (sem número, mas o primeiro de sua espécie) pelo qual o movimento militar de 1964 se configurou no plano jurídico-político. 
Recentemente, o ator Carlos Vereza divulgou um vídeo em que alerta para sinais de manipulação do movimento reivindicatório por elementos ligados ao governo, que seria, pelos motivos que expõe, beneficiado com o clima que se está instaurando. Eu mesmo tenho visto algumas postagens na internet de caráter claramente provocador, dando ao que acontece hoje um caráter beligerante que não se situa no plano da luta cidadã, para situar-se no da rebelião violenta. Hoje, em Salvador, que parecia um primor de civilidade nas passeatas, a violência eclodiu.
Tudo na vida tem duas faces – é o lugar comum da metáfora da moeda. Se um movimento tem uma liderança clara e firme, tem um objetivo, defende interesses bem determinados, essa liderança pode incluir ou excluir de sua tática ações que estejam de acordo ou em desacordo com os objetivos colimados, estimulando ou cerceando os atores que as praticariam. Por outro lado, interesses assim configurados são excludentes, na medida em que não correspondem a um desejo generalizado da sociedade que, ao contrário do que imaginam os ideólogos, não anseia, de modo uniforme, pela especial receita de felicidade política que eles, ideólogos, preconizam.
Se, por outro lado, o movimento é aberto e negativamente reivindicatório (no sentido esclarecido em outra postagem) não há como ser escoimado de participações indesejáveis (e não são indesejáveis porque assim foram classificados em uma censura ideológica, mas por falta de autenticidade, por compromisso fraudulento com algo que não é a reivindicação em si). Só esse, porém, é o tipo de movimento que pode empolgar toda a sociedade e que, a meu juízo, pode estar acontecendo agora.

De minha parte, estou velho, aposentado e privado de fontes especializadas de informação, mas os acontecimentos que vejo me trazem  à lembrança a frase com que, outrora, os participantes dos jogos de cartas eram alertados por terceiros contra a possibilidade de estarem sendo enganados mediante prática fraudulenta a serviço do adversário: tem peru na roda!

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Minhas pernas, o sapoti e a vaia de D. Dilma

Dia 17 de junho, coloquei na tribuna de todos nós, o Facebook, uma foto da concentração de manifestantes diante do Shopping Iguatemi, em Salvador, com a seguinte mensagem: “Eu não estou ali porque sou um velho de pernas trôpegas. Meus netos estão, e ME REPRESENTAM”. A postagem suscitou vários comentários.  Em resposta a um deles, que procurava comparar o que acontece hoje com a chamada “passeata dos cem mil”, no Rio de Janeiro, em 1968, afirmei que o que hoje se vê é bem mais importante, e escrevi: “Em 68 a opção era entre esquerda e direita, em um mundo bipartido entre autoritarismos. A opção de hoje é entre um regime enganador e falido e um início de expressão da cidadania, em um mundo que se abre. É MUITO diferente!”
Reconheço a natureza polêmica de afirmativas desse tipo. Portanto, creio adequado desenvolver um pouco mais minha asserção. Começo pela metáfora do sapoti.
O sapoti é uma das frutas mais saborosas que o clima tropical produz. Entretanto, para ser apreciado na plenitude de seu delicado sabor tem de ser colhido maduro, quando cai espontaneamente do pé. Colhido antes, é duro e insuportável pela quantidade de tanino, popularmente chamado “cica”. Amadurecido “à força”, pode ficar mais adocicado, mas não se compara ao fruto madurado naturalmente no seu devido tempo. O problema é que as aves e os morcegos atacam o fruto maduro, de modo que é raro que se encontre um sapoti caído que já não esteja rompido e precocemente apodrecido.
Assim são as manifestações do povo.
De lenta maturação, servem, ainda verdes, à manipulação por interesses muito particulares, que nada têm a ver com a autenticidade imaginada pelos primeiros teóricos da democracia representativa – aquilo que, no século XX, Habermas chamaria de interesses universalizáveis.
Por outro lado, as ações político-partidárias facciosas, as pressões dos formadores de opinião, a orquestração de interesses poderosos também podem fazer com que, ao amadurecer, a opinião popular se torne precocemente apodrecida em um comportamento de massa particularizado e irrelevante.
Minha (polêmica) tese é a de que estamos diante de um sapoti maduro, isto é, de uma manifestação autêntica e poderosa e, antes de ser acusado de ingenuidade inadmissível, gostaria de explicar detidamente meu ponto de vista.
Aparentemente, tudo se inicia com a elevação do preço das passagens de ônibus na cidade de São Paulo em 20 centavos. Logo, todo o país se incendeia com manifestantes questionando desde o custo do transporte público até a corrupção generalizada. Cria-se, então, um movimento articulado, mas não coordenado, que quer muitas coisas e parece nada querer de modo específico. Aliás, a falta de um objetivo claro foi uma das críticas feitas e esse movimento.
Creio que o movimento tem a força do que costumo chamar reivindicação negativa. Este tipo de reivindicação não se faz para conseguir algo certo e determinado, mas representa a indicação de que um presente estado de coisas é intolerável. Uma reivindicação negativa não pode ser apaziguada pela concessão dos anéis para que se preservem os dedos; mais cedo ou mais tarde, mudanças substanciais precisarão ocorrer, porque a existência de reivindicações negativas indica, precisamente, o esgotamento de um modo de convivência que não pode ser preservado apenas com pequenos reparos.
Se um movimento é feito para reivindicar mais verbas para a saúde ou educação, é uma reivindicação positiva a favor de algo inexistente. Se for feito um movimento para derrubar o governo, tratar-se-á de uma reivindicação positiva contra algo existente. Na reivindicação negativa, não: o que se veicula é que o estado de coisas presentes é intolerável, é que como está não pode continuar, mesmo que não se saiba precisamente o que deve vir depois, ou – o que é mais frequente – que diferentes grupos e participantes tenham receitas de futuro diversas.
A força dos movimentos de reivindicação negativa deriva precisamente disso: eles não buscam algo especifico, buscam o fim de um estado de coisas, deixando em aberto o futuro. O que pode vir é desdobramento do movimento reivindicatório, mas não sua consequência previsível, já que não opera sob o controle da força de um grupo que o tenha organizado – porque tal grupo inexiste.  Os grupos organizadores, que podem estar inseridos no movimento, fazem reivindicações positivas, sejam elas a favor de fatos ou coisas inexistentes, sejam contrárias a fatos ou coisas existentes.
É difícil perceber uma reivindicação negativa, mesmo entre os que a fazem. Por isso, ela ou aparece como pluralidade de reivindicações que parecem erráticas e fracamente correlacionadas ou se afigura reivindicação por algo amplo e genérico que, sem operacionalização, nada significa.
Na verdade, o povo quer respeito. É difícil traduzir “respeito” em uma lista finita de providências concretas. Trata-se de uma atitude diferente no trato da coisa pública. Trata-se de seriedade e razoabilidade nas ações.
Esse movimento não é partidário, mas é profundamente político. O povo não quer derrubar o governo, mas quer derrubar o desgoverno. O povo não quer extinguir a corrupção de um partido, mas quer extinguir a corrupção, não em certos e determinados casos, mas como atitude rotineira no desenrolar das atividades de Estado. O povo não quer verbas específicas, mas quer que o dinheiro público seja empregado com critério.
Esse movimento significa, sobretudo, a recusa de confiança do povo nos grupos políticos que empolgam o poder. Ninguém ficou imune. Não há partido ou personalidade que mereça , hoje, um voto de confiança tal que possa governar sem transparência e sem prestar minuciosas contas do que esteja fazendo. O povo descobriu que os governantes são nossos empregados, que nos pediram emprego pela televisão na época das eleições e, portanto, não podem ser deixados a si próprios como se estivessem gerindo coisa sua.  O povo precisa vigiar o Estado, porque, como diz o ditado interiorano, “é o olho do dono que engorda o gado”.
D. Dilma, coitada, entra nisso como Pilatos no Credo. Estava no lugar certo na hora errada. As vaias que recebeu não são tão relevantes assim. Não sei em Brasília, mas no Maracanã, no Rio de Janeiro, a única personalidade não ligada ao futebol que algum dia foi aplaudida em vez de vaiada foi o general Emílio Garrastazu Médici. Era ditador, mas era popular. Que fazer? Getúlio Vargas também foi ditador e também foi popular. O povo, na verdade, jamais se importou muito com democracia ou ditadura. O sapoti estava verde. Agora é diferente. O sapoti amadureceu. A Constituição Cidadã do doutor Ulysses ajudou a fazer cidadãos. Essa é a grande novidade.

Ser cidadão não é só ir às ruas e reivindicar como quem sabe que pode exigir. A cidadania ainda está sendo descoberta. Quando for plenamente entendida, terá acontecido a primeira revolução verdadeira na história do Brasil. Na África, tudo começou por um tapa na cara desferido contra o camelô tunisino  Mohamed Bouazizi. No Brasil pode ter começado por vinte centavos.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O Muro de Berlim está caindo... no Brasil

Em 1968, uma onda de protestos libertários espalhou-se pela Europa, alegadamente deflagrada pela punição, na França, a um universitário que fora encontrado em “visita íntima” no dormitório das meninas (ou vice-versa, estou citando de memória). O mote da revolta era: “É proibido proibir.”
Quando os ventos europeus de 1968 chegaram ao Brasil, a reivindicação negativa de Danny le Rouge (Daniel Marc Cohn-Bendit, de nacionalidade alemã, mas estudante na França) assumiu a forma de uma reivindicação positiva contra algo: a Ditadura. Sim, havia um governo autoritário cuja margem irrestrita de poder o caracterizava como ditatorial. Entretanto, a letra maiúscula que uso não representa qualquer homenagem minha a essa forma de regime. Uso a letra maiúscula para caracterizar Ditadura como nome próprio, isto é, para referir-me àquela ditadura.
De minha parte, considero a democracia mais conveniente que qualquer ditadura, até do que aquela que me tivesse como ditador.  Não era o caso em 1968. Nem todos os grupos que se opunham à Ditadura tinham, como alternativa ideal, a democracia. Na verdade, muitos deles ficariam felizes se a Ditadura fosse substituída por outra: a ditadura do proletariado que, como Lênin explicou, enquanto este não tivesse consciência de classe, teria de ser exercitada pela vanguarda do proletariado, o Partido, no qual pontificava o Comitê Central sob a iluminada liderança do carismático e infalível Secretário Geral. Fora assim que  Iossif Vissarionovitch Djugashvili, geralmente conhecido como Stalin, tornara-se ditador da União Soviética e, após a segunda guerra mundial, a conduzira na chamada Guerra Fria, o confronto político-ideológico com o  “bloco ocidental”, liderado pelos Estados Unidos.
A Guerra Fria foi um confronto de poder entre duas potências hegemônicas, disputando o mundo globalizado que se anunciava ainda discretamente. Como todo confronto de poder, cada lado escudava-se em uma capa de respeitabilidade ética, defendendo valores que seduziriam seus possíveis súditos: do lado americano, a liberdade; do lado soviético, a revolução proletária mundial.
No Brasil a Guerra Fria produziu o golpe militar de 1964, que possibilitou a Ditadura. Esta se acabaria em 1985, pelo mesmo mecanismo que a havia produzido: a Guerra Fria, neste caso em processo de deterioração. Formalmente extinta em 1991, pelo desmantelamento da União Soviética, a Guerra Fria teve, como ícone mais marcante de seu fim, a derrubada do Muro de Berlim, em 1989. O Muro de Berlim havia sido uma parede de concreto construída e, com o tempo, reforçada entre os lados leste (socialista) e oeste (capitalista) da cidade de Berlim. Desse modo, o muro representava fisicamente a fronteira nítida entre o domínio político da esquerda e o domínio político da direita, nos sentidos em que esses termos eram usados em meados do século XX. A Guerra Fria era, portanto, um confronto entre esquerda e direita.
O golpe militar de 1964 representou uma “derrota” da esquerda no plano bélico. Entretanto, teve e tem entre nós razoável sucesso a estratégia preconizada por Antonio Gramsci (genial pensador e um dos fundadores e líderes do Partido Comunista Italiano) para reverter a hegemonia cultural das classes dominantes. A ideia de Gramsci, em grandes linhas, é que, pelo controle dos meios de comunicação, das organizações religiosas e, sobretudo, do magistério, é possível reformar a mentalidade das gerações vindouras, de modo a criar, na superestrutura social, as condições que a revolução proletária produziria, se fosse viabilizada.
Feliz ou infelizmente, não vem ao caso, no Brasil nada é levado tão a sério assim. Desse modo, o relativo êxito da hegemonia cultural da esquerda traduziu-se pela demonização da direita, mais que por efetivas alterações no pensamento real da sociedade. Ocorreu que, ao mesmo tempo que a esquerda passava a ser clandestina, por temor da perseguição estatal, a direita também passava ser clandestina, por “vergonha cultural”. Ninguém mais no Brasil era de direita.  “Ser de direita” virara um palavrão, abundantemente distribuído a adversários políticos de qualquer matiz. Então, passou a ser comum ver pessoas verbalizarem o discurso da esquerda, porque é “de bom tom”, e pensarem e agirem de forma diferente, sem mesmo perceberem a contradição, porque o próprio significado do discurso só ficara corretamente inteligível a alguns ideólogos conscientes.
Como se sabe, o verdadeiro democrata é o oposto do “dono da verdade”, ou seja, é o oposto dos ideólogos de extremismos, tanto de direita quanto de esquerda. Não é, portanto, surpreendente que a contraposição à Ditadura tenha sido liderada, no seu aspecto mais visível, por opositores que, se pudessem, ficariam satisfeitos com outra ditadura: a sua própria ou de seus amigos.
Criou-se a lenda eleitoral de que a esquerda derrotara a Ditadura e conquistara a democracia. Não é verdade, mas, dizem os italianos, si non è vero è ben trovato, que se pode traduzir livremente como “é uma bela história, mesmo que não seja verdadeira”. Em política, como se sabe, a verdade é, em grande parte, irrelevante; os efeitos decorrem principalmente do que se imagina que seja e não do que é.
A transição brasileira para a democracia foi consentida. Um parecer do ministro Neri da Silveira transformado em Resolução do Superior Tribunal Eleitoral declarou a inaplicabilidade da fidelidade partidária no Colégio Eleitoral, possibilitando juridicamente a eleição de Tancredo Neves. Isto certamente foi facilitado pelo fato de ter o notório senhor Paulo Maluf atropelado o último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo, fazendo-se candidato pela Arena contra a vontade deste.
Tancredo Neves, um homem de centro, fora apoiado pela esquerda. Depois do breve interregno de Collor/P.C. Farias, vêm Fernando Henrique, considerado um homem de esquerda, e a quintessência da esquerda tolerada pelo regime militar: Luís Inácio Lula da Silva. O partido de Fernando Henrique, o PSDB, estruturara-se a partir de intelectuais de esquerda que, antes, formavam os “puros” do PMDB, qualificativo difícil de ser explicado e entendido, tratando-se de política partidária. O partido de Lula, o PT, tinha, em seus estatutos originais, compromisso com a revolução socialista, depois abrandado em tempos de democracia. Era, portanto, a esquerda no poder.
É verdade que o PT no poder não é o mesmo PT da oposição. Disseram-no, mais por atos que por palavras, o então presidente Lula e o então todo-poderoso ministro Dirceu quando defenestraram, por mal ou por bem, os petistas coerentes que saíram para fundar o PSOL. Entretanto, o governo que aí está, chefiado por D. Dilma, invenção política de Lula de quem fora um alter ego tecnicamente competente na administração do governo, é a esquerda “clássica” em toda sua glória: os derrotados de ontem, hoje vitoriosos, graças à democracia.
Chegamos, assim, às manifestações de junho de 2013. Não se trata de um movimento contra o governo e a favor da oposição. Não se trata de um protesto da esquerda contra a direita. A direita, no Brasil, com cara e identidade de direita, já havia desaparecido há muito tempo. Restava uma esquerda “clássica”, parada no tempo, ainda "lutando contra a Ditadura” e que, como a Carolina de Chico Buarque, não viu o tempo passar na janela.
Essa esquerda “clássica” acaba de ser enterrada pelos jovens na rua, que representam os interesses que ela, a esquerda, deveria estar defendendo, só que eles, os jovens, não querem, para isso, uma ditadura. Tal qual os que derrubaram o muro de Berlim e os regimes ditatoriais do leste europeu, com protestos e passeatas, eles não querem algo especifico, mas, apenas, denunciam que “isso que ai está” não pode continuar.
Este governo e seu principal partido não representam mais o santo guerreiro da esquerda personalizada contra o dragão da maldade da direita mais ou menos identificada. Acaba-se, desse modo, a sacralização dos que se arrogavam santidade política em virtude de terem “derrubado” a Ditadura. Acaba-se a blindagem de um grupo político que, alegadamente, é – e só ele o é – o defensor do povo e o único adversário político de nebulosas “elites” (que certamente existem, mas jamais são precisamente identificadas; como fantasma, o inimigo é mais assustador).

É o Muro de Berlim caindo no Brasil. A sociedade chegou a seu limite de tolerância com "isso que aí está", e não há salvadores da Pátria previamente ungidos a quem recorrer.