Há pouco mais de 50 anos, descobri, muito jovem ainda, que
havia um fenômeno chamado rotação
diferencial da Galáxia. O empenho que tive em entender o de que se tratava
teve um efeito colateral que nunca pude determinar se foi, para mim, fonte de
consolo ou de desencanto: percebi que se a Terra inteira fosse aniquilada o
efeito desse cataclismo na rotação diferencial da Galáxia seria nulo. O efeito colateral em minha mente foi
avassalador: convenci-me de que o fenômeno humano é irrelevante em escala
cósmica.
Um ou dois anos depois, li, avidamente como lia tudo que me
caía nas mãos, o Sermão de Benares – o primeiro sermão do Buda – em cuja parte
introdutória ele diz (cito de memória): “o amor compassivo do Tathagatha distribui-se uniformemente por todos os seres
do Universo, por isso eles o chamam Pai”.
Mesmo hoje, não tenho palavras precisas para descrever o que senti – e ainda
sinto – diante dessa afirmativa, mas tive e tenho a certeza de que ela foi uma revelação: minha meta na vida seria (como é) poder algum dia fazer essa
mesma declaração a meu próprio respeito.
Então, operou-se curiosa bipartição em mim. Por um
lado, os fenômenos planetários e, especialmente, humanos, deixavam de ter
relevância em minha mente. Por outro lado, o cultivo de um amor compassivo por
todos os seres tornava-se o imperativo moral mais forte a conduzir meu
julgamento do mérito das ações e a Nêmesis permanente a vergastar meus
afastamentos desse ideal que fizera meu.
À medida que a convivência com pessoas de todos os tipos
foi-se acrescentando às minhas experiências juvenis, o amor compassivo
tornou-se nitidamente superior, como motor da existência, à irrelevância da
humanidade. O ideal búdico sempre se me
afigurou mandatório para mim, mas, quanto às ações dos outros, aplicava-se a
eles, de minha parte, um certo ceticismo blasé, vista a desimportância, afinal,
do fenômeno humano. Contraditório, talvez, mas quem repudia a contradição é a
lógica, não a realidade.
Um terceiro elemento da minha precoce formação foi, tanto quanto
me parece, inato: uma grande facilidade de perceber imediatamente os múltiplos
aspectos da cada situação; uma percepção “a sentimento” de algo que só iria estudar
intelectualmente muito tempo depois: os interesses ocultos por trás dos valores
declarados.
O (triste) resultado disso foi que o agudo sentimento da
experiência do Outro misturava-se com profundo desencanto, face à hipocrisia
humana, em relação a quaisquer movimentos “salvadores da humanidade”,
religiosos ou profanos. Esse desencanto não se transformou em desespero – estou
falando da minha adolescência! – porque, afinal, como havia “descoberto”, o
fenômeno humano nada significava em escala cósmica.
Tornei-me capaz de apaixonar-me por pessoas, mas
nunca por movimentos, seja porque não encontrasse nenhum em que os valores
proclamados não escondessem interesses inconfessáveis de indivíduos, seja porque jamais
tolerei disciplina de consciência. Posso, certamente, adaptar, em certa medida,
minha conduta à conduta de outras pessoas com quem deva trabalhar para a
realização de um propósito comum, mas não conseguia – e ainda não consigo –
alienar meu julgamento a uma autoridade maior: jamais consegui ser liderado em
termos de limites à minha curiosidade e do julgamento de valor que faço acerca
do que imagino conhecer. Sempre fui – e continuo sendo – o que nos Estados
Unidos se chama um maverick, termo
pejorativo, colhido do nome dos cavalos que não andam em bando, para designar o
solitário que não submete sua opinião à orientação de partidos, igrejas ou corporações.
Não me vanglorio disso. Ao contrário, a solidão é pesada,
muito pesada. Participo do que acho que deva participar (muito pouca coisa, na
verdade) sem paixão e com intenso senso crítico, de modo que me retiro tão logo
o rumo das coisas ou das pessoas se afasta do que entendo ser conveniente.
A experiência da vida, a reflexão e o cultivo acadêmico me
levaram a praticar um outro exercício – este fascinante! Em vez de repudiar in limine o pensamento de quem quer que manifeste
ideias – não importa se elas me despertam concordância ou discordância – sinto-me
intelectualmente obrigado a raciocinar dentro
do paradigma ideológico ou teórico utilizado pelo meu interlocutor, para
verificar a exatidão de seu pensamento no
contexto de seu próprio referencial e não em outro qualquer que eu
porventura considerasse preferível. É claro que tenho minhas convicções
provisórias, mas não acho útil confrontar as convicções de outrem com as
minhas, para fins de avaliação de seu pensamento. O que considero valer a pena
é entendê-las como ele as entende (ou deveria entendê-las em seus próprios
termos) e, depois disso, sim,
comparar o mérito delas com o mérito de meu pensamento anterior ao conhecimento assim adquirido. Anos depois de ter tornado habitual essa prática, descobri que o filósofo
Espinosa procurava fazer a mesma coisa, e senti-me em boa companhia.
A expressão “convicções provisórias” decorre da certeza de
que não conheço a verdade (e, para esse efeito, nenhuma outra pessoa a conhece), se é que “verdade”
é “alguma coisa” que se conheça. Não desejo tornar este texto filosófico, no
sentido especializado, mas quero afirmar que vejo, de preferência, a “verdade” como hipóstase dos critérios que legitimam a aplicação do predicado ”é verdadeiro”. Esses
critérios – verifica-se – alteram-se ao longo da história, de modo que as
convicções, que representam a intuição dessa verdade cambiante, mudam no tempo
e com a quantidade e o tipo de informações de que dispõe o grupo social em que
o indivíduo se reconhece inserido.
Tudo isso é dito para explicar o que sinto diante do que
acontece neste mês de junho no Brasil.
O que me empolga no que estou vendo é exatamente o que muitos
deploram: a dificuldade (que espero seja, de fato, impossibilidade) de uma
força organizada controlar o movimento das ruas. É evidente que tendências
políticas estruturadas, de todos os matizes, tentam e tentarão tirar vantagem
dessa súbita energia popular.
Depois dos primeiros dias, vejo, no meio que possibilitou
esse movimento aparentemente caótico – a Internet –, o contra ataque dos
tradicionais controladores da massa, seja para desqualificar a espontaneidade,
seja para inculcar aos manifestantes seus próprios objetivos. Isso é natural e deveria ser esperado. Entretanto
– e tomara que não me engane – creio que esse movimento não é da massa, é do
povo. Há sutil diferença entre esses termos, embora possa ser aplicado ao mesmo
conjunto de pessoas. A massa é manipulada e repercute ideias de uma liderança
restrita, frequentemente de natureza autoritária; o povo é capaz de despertar
ideias e sentimentos espontâneos, que podem ser desagradáveis a algumas
lideranças e, talvez, a todas.
Alguns alertam para o perigo de que o movimento apartidário
seja antipartidário, alegadamente por medo de
que dele se aproveitem candidatos a autócratas, mas, talvez, apenas porque isso
tira de seu próprio partido o protagonismo. Alguns criticam a falta de reivindicações
específicas do movimento ou, por outro lado, a pluralidade de reivindicações
que tornariam esse mesmo movimento politicamente estéril.
Quero dizer que é exatamente isso que me atrai a atenção.
Esse movimento não é um movimento de esquerda no sentido clássico, mas também
não é um movimento de direita. Percebo isso menos pela retórica dos
manifestantes e mais pela insatisfação dos ideólogos das duas extremidades com
uma prática que eles não controlam. Se fosse um movimento de esquerda ou de direita,
eu voltaria a cogitar da rotação diferencial da Galáxia e a aproveitar mais um
exercício da estupidez humana pra por à prova meus frágeis progressos no
sentido de expandir meu amor compassivo. Mas não é. Acredito estar vendo um
fenômeno novo que não se descreve nem se compreende pelos manuais ideológicos
do tempo da Guerra Fria. Acredito que não é apenas pela revolução informacional
que um movimento desses se tornou possível, mas pelo surgimento de outra
mentalidade, gerada por processos neuronais que a tecnologia contemporânea ajuda a desenvolver. Por outro lado, tal qual tem acontecido ao longo da história, o Brasil ainda não
faz a sua; repercute uma onda internacional. Então, do mesmo modo que o quadro
internacional desafia a geopolítica que conheci ao longo da vida, creio que o
que aqui acontece desafia as técnicas de análise que foram úteis no
passado.
Não sei o que vai acontecer. Não acredito na analogia simplista que supõe que se esteja fazendo desordem para atrair uma ditadura. Creio, sim, que estamos diante de um quadro revolucionário, mas não em termos da velha revolução socialista que a esquerda do começo do século XX imaginava. Creio que, assim como a revolução burguesa do século XVIII (revolução americana e revolução francesa) substituiu a soberania unipessoal do rei pela soberania impessoal do povo, estamos vivendo uma nova transformação no conceito de soberania que afetará não apenas as relações internacionais, mas, também, as relações interpessoais e as formas de dominação (que, desculpem, sempre existiram e sempre existirão).
Não sei se verei o final desse processo, ou, pelo menos, sua estabilização em um patamar intermediário. Afinal, sou velho. A rotação diferencial da Galáxia e uma análise realista do tempo que me resta talvez me aconselhem a não me empolgar tanto com esses assuntos e cuidar mais da tentativa, ainda não tão bem sucedida assim, de expandir meu amor compassivo.
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