A primeira pergunta que o estrategista tem de se fazer é:
quem sou eu; quem é meu adversário? Não, não houve equívoco de português. Essas
não são duas perguntas, é a forma composta de uma só. Estrategicamente, quem
sou eu depende de quem seja meu adversário e quem é meu adversário depende de
quem seja eu.
Temos muitas identidades: a identidade real (aquela que
temos para nós), a identidade virtual (a que os outros nos atribuem), a
identidade jurídica (que é cartorialmente reconhecida no sistema social) e a
identidade pragmática (a que deriva de nossas ações e do nosso modo de agir).
No conjunto, elas compõem nossa representação social – o que somos como seres
sociais. A identidade estratégica é a representação social de um ator conforme
determinada por um antagonismo, isto é, a identidade do ator como combatente contra
outro ator ou conjunto de atores.
Embora haja atores sociais referidos por denominações
genéricas, que podem ser substantivos comuns ou nomes próprios, e os chamemos
de atores porque a eles atribuamos um agir específico, determinado e
voluntário, só pessoas praticam ações. O governo nada faz; quem faz é D. Dilma,
o ministro Mercadante, a ministra Gleisi etc. O Senado nada diz; quem diz é o senador
Taques, o senador Buarque, o senador Calheiros (com muitas desculpas por usar
os nomes dos três na mesma frase) etc. A autoridade do governo, não se confunde
com a de D. Dilma, nem a autoridade do Senado se confunde com a do senador Calheiros; entretanto essas personalidades podem
agir, respectivamente, em nome do governo ou do Senado, mas suas ação são
sempre ações das pessoas que elas são, e não há ações que não sejam de pessoas.
Juridicamente, essa distinção pode ser ou não relevante;
estrategicamente é sempre relevante, embora muitas pessoas não saibam disso. É
relevante porque a identidade estratégica do ator não depende apenas de sua
definição jurídica, mas tem a ver com sua identidade pragmática e a
caracterização do modo de agir do ator complexo envolve quem pratica tais ou
quais ações, em nome dele ou em seu próprio nome, mas pertencendo a ele.
Na retórica política, por astúcia ou ingenuidade, costuma-se
utilizar nomes pomposos e comovedores para designar atores cujas identidades
são nebulosas: o povo, as elites, o sistema, a mídia, o partido, a igreja e
assim por diante. Mas quem é o povo? Quem é o sistema? Quem são as elites? Etc.
Em geral, a resposta vem fácil, rápida e fulminante. Ela caracteriza uma
parcela desses atores de maneira igualmente fluida e indefinida, mas
apresentada na feição que interessa a quem esteja respondendo. O povo é a gente
sofrida e trabalhadora. As elites são aqueles que se locupletam com o dinheiro
do povo. O sistema é essa engrenagem perversa que mantém a injustiça. E pode
muito bem acontecer que quem assim responde seja alguém que não trabalha, se
locuplete com o dinheiro do povo e faça isso graças à engrenagem perversa que
mantém a injustiça – tudo aquilo de que essa hipotética pessoa se deseja
distanciar estrategicamente ao dar semelhante resposta. Coisas como tais, nada
acrescentam, mas despertam as emoções de quem esteja indagando na linha do
interesse de quem assim “define” os atores que não foram, afinal, definidos.
Talvez a reposta possa ser até mais restritiva na sua imprecisão: o povo é
você; as elites (ou sistema) são eles! É
bonito, mas continua inespecífico. Um indivíduo não é o povo e “eles” pode ser
qualquer um.
Percebe-se que esse modo de falar, além do apelo que faça à
emoção do destinatário, tem uma característica fundamental: impede a
comprovação da verdade, mediante o confronto com dados factuais, de qualquer
afirmativa que se faça usando esse tipo de termos.
Meu eventual leitor poderia alegar que esta afirmativa, sim,
é factualmente falsa, dando como exemplo uma frase do tipo “os políticos são
corruptos” confrontada com numerosíssimos caso de corrupção de políticos. Eu
teria de explicar que, no sentido lógico, os numerosíssimos casos de corrupção de
políticos provam, apenas, que há políticos corruptos ou, até, que numerosos
políticos são corruptos, mas não prova que os políticos (isto é, todos os
políticos, sem exceção) sejam corruptos.
Isto, que pode parecer uma filigrana acadêmica, tem fortes implicações. Se
fosse verdade que os políticos são corruptos, a consequência lógica seria a desqualificação
necessária da democracia representativa em benefício de uma ditadura iluminada,
seja teocrática, seja profana.
A demonização de atores complexos serve, apenas, para colher
apoio a sua destruição, o que atende a interesses de outros atores complexos em
busca da hegemonia. É preciso, portanto, que se questione que legitimidade têm
os atores em busca da hegemonia para que ela lhes fosse concedida. Como se prova
que a supremacia inconteste de tais atores representaria, para usar as palavras
de D. Pedro I, “o bem do povo e a felicidade geral da nação”?
A resposta a esse incômodo questionamento viria,
possivelmente em uma peroração na qual expressões como “compromisso histórico”,
“lutas históricas” e “povo” seriam
abundantemente empregadas para produzir um discurso cuja verdade em termos
factuais continuaria a ser impossível de verificar-se.
O equilíbrio democrático é dinâmico. Ele não pressupõe a
supremacia incontrastável nem a destruição de qualquer ator que represente
interesses coletivos, mas coloca-se, necessariamente, em um espaço de
negociação livre no qual a natureza desses interesses seja explicitada e sua
posição na pauta geral dos interesses sociais seja situada, ainda que
temporariamente, até que nova correlação de forças se manifeste. A natureza do
regime democrático não é solucionar os problemas por atos de uma autoridade absoluta;
é justamente manter em atividade esse espaço de negociação livre, de modo que a
sentença de morte que hoje parece justa possa ser revogada amanhã quando sua injustiça
parecer igualmente gritante.
A democracia é medíocre e lenta, e nisso reside sua
maravilha. Ela pode errar e corrigir o erro. Depois, pode descobrir que errara
ao corrigir, e refazer o que fora desfeito. As ditaduras não. Sejam elas de
direita ou de esquerda, os ditadores, ou alguém por eles, são infalíveis. Eles
conhecem a verdade e anteveem o futuro, e quem não percebe isso ou é um ignorante
que precisa ser corrigido ou é um malicioso que precisa ser punido. Portanto,
jamais a opinião discordante (chamada, então, de dissidente) deve ser ouvida e
ponderada. Na democracia, quem discorda é opositor, e só deve ser combatido
com argumentos, não obstante os eventuais donos do poder se sintam irritados
demais para argumentar. Nas ditaduras, os dissidentes são apresentados e
perseguidos como criminosos contra o Estado e contra o povo, enquanto, na
verdade, são, apenas, opositores ao agir de pessoas que se arrogam a propriedade exclusiva da
verdade apenas porque, em suas crenças pessoais, o sejam inequivocamente.
Pelos motivos acima expostos, sou um democrata. Posso viver
sob uma ditadura, e até já vivi, mas acredito nos valores da democracia. E um
dos principais valores da democracia é responsabilidade política dos agentes
públicos. Não quero saber de “os políticos”, “o partido” ou “o sistema”. Quero saber
quais políticos, quem no partido ou o quê no sistema. Não quero grupos
demonizados, como não quero grupos blindados contra a crítica. Posso ter
simpatias e antipatias, como os demais também as têm e podem ter, mas na hora de
decidir cursos e ação, é preciso agir como estrategista, e o estrategista tem,
a lhe dirigir o julgamento, não seus próprios gostos, mas os propósitos cuja
realização deve avaliar. Em especial, o estrategista político democrático nunca
pode perder de vista que se o espaço de negociação livre for fechado à ação
política, acaba-se a democracia e, sem ela, quaisquer ganhos passam a depender
da vontade do poderoso do dia.
A democracia, por si só, não é a solução mágica de todos os
problemas. Por outro lado, é possível receber benesses em uma ditadura. O que
não é possível na ditadura é ter direitos. Eu sei que não existem soluções
miraculosas e não quero benesses, eu quero direitos, e direitos para todos.
Isto só é possível dentro de uma ordem jurídica que, se insatisfatória, deve
ser aperfeiçoada, nunca abolida.
Portanto, se me disserem que é preciso destruir isso ou
aquilo, eu perguntarei: Destruir? Mas destruir o quê, exatamente? Punir? Mas punir
a quem, exatamente? E se me sugerirem um slogan como “todo poder ao povo” ou a
qualquer outro coletivo que nada significa, eu direi que sou contra, sem mesmo
perguntar quem é, neste caso, o “povo”, porque qualquer indivíduo ou grupo de
indivíduos que seja apresentado em resposta certamente não merece todo o poder.
O poder não precisa ser dado ao povo. Na democracia, ele já o tem. Apenas, no caso
brasileiro, parece que só agora ele está descobrindo isso.
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