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sexta-feira, 21 de junho de 2013

Democracia sim, ditadura não.

A primeira pergunta que o estrategista tem de se fazer é: quem sou eu; quem é meu adversário? Não, não houve equívoco de português. Essas não são duas perguntas, é a forma composta de uma só. Estrategicamente, quem sou eu depende de quem seja meu adversário e quem é meu adversário depende de quem seja eu.
Temos muitas identidades: a identidade real (aquela que temos para nós), a identidade virtual (a que os outros nos atribuem), a identidade jurídica (que é cartorialmente reconhecida no sistema social) e a identidade pragmática (a que deriva de nossas ações e do nosso modo de agir). No conjunto, elas compõem nossa representação social – o que somos como seres sociais. A identidade estratégica é a representação social de um ator conforme determinada por um antagonismo, isto é, a identidade do ator como combatente contra outro ator ou conjunto de atores.
Embora haja atores sociais referidos por denominações genéricas, que podem ser substantivos comuns ou nomes próprios, e os chamemos de atores porque a eles atribuamos um agir específico, determinado e voluntário, só pessoas praticam ações. O governo nada faz; quem faz é D. Dilma, o ministro Mercadante, a ministra Gleisi etc. O Senado nada diz; quem diz é o senador Taques, o senador Buarque, o senador Calheiros (com muitas desculpas por usar os nomes dos três na mesma frase) etc. A autoridade do governo, não se confunde com a de D. Dilma, nem a autoridade do Senado se confunde com a do senador  Calheiros; entretanto essas personalidades podem agir, respectivamente, em nome do governo ou do Senado, mas suas ação são sempre ações das pessoas que elas são, e não há ações que não sejam de pessoas.
Juridicamente, essa distinção pode ser ou não relevante; estrategicamente é sempre relevante, embora muitas pessoas não saibam disso. É relevante porque a identidade estratégica do ator não depende apenas de sua definição jurídica, mas tem a ver com sua identidade pragmática e a caracterização do modo de agir do ator complexo envolve quem pratica tais ou quais ações, em nome dele ou em seu próprio nome, mas pertencendo a ele.
Na retórica política, por astúcia ou ingenuidade, costuma-se utilizar nomes pomposos e comovedores para designar atores cujas identidades são nebulosas: o povo, as elites, o sistema, a mídia, o partido, a igreja e assim por diante. Mas quem é o povo? Quem é o sistema? Quem são as elites? Etc. Em geral, a resposta vem fácil, rápida e fulminante. Ela caracteriza uma parcela desses atores de maneira igualmente fluida e indefinida, mas apresentada na feição que interessa a quem esteja respondendo. O povo é a gente sofrida e trabalhadora. As elites são aqueles que se locupletam com o dinheiro do povo. O sistema é essa engrenagem perversa que mantém a injustiça. E pode muito bem acontecer que quem assim responde seja alguém que não trabalha, se locuplete com o dinheiro do povo e faça isso graças à engrenagem perversa que mantém a injustiça – tudo aquilo de que essa hipotética pessoa se deseja distanciar estrategicamente ao dar semelhante resposta. Coisas como tais, nada acrescentam, mas despertam as emoções de quem esteja indagando na linha do interesse de quem assim “define” os atores que não foram, afinal, definidos. Talvez a reposta possa ser até mais restritiva na sua imprecisão: o povo é você; as elites (ou  sistema) são eles! É bonito, mas continua inespecífico. Um indivíduo não é o povo e “eles” pode ser qualquer um.
Percebe-se que esse modo de falar, além do apelo que faça à emoção do destinatário, tem uma característica fundamental: impede a comprovação da verdade, mediante o confronto com dados factuais, de qualquer afirmativa que se faça usando esse tipo de termos.
Meu eventual leitor poderia alegar que esta afirmativa, sim, é factualmente falsa, dando como exemplo uma frase do tipo “os políticos são corruptos” confrontada com numerosíssimos caso de corrupção de políticos. Eu teria de explicar que, no sentido lógico, os numerosíssimos casos de corrupção de políticos provam, apenas, que políticos corruptos ou, até, que numerosos políticos são corruptos, mas não prova que os políticos (isto é, todos os políticos, sem exceção) sejam corruptos.  Isto, que pode parecer uma filigrana acadêmica, tem fortes implicações. Se fosse verdade que os políticos são corruptos, a consequência lógica seria a desqualificação necessária da democracia representativa em benefício de uma ditadura iluminada, seja teocrática, seja profana.
A demonização de atores complexos serve, apenas, para colher apoio a sua destruição, o que atende a interesses de outros atores complexos em busca da hegemonia. É preciso, portanto, que se questione que legitimidade têm os atores em busca da hegemonia para que ela lhes fosse concedida. Como se prova que a supremacia inconteste de tais atores representaria, para usar as palavras de D. Pedro I, “o bem do povo e a felicidade geral da nação”?
A resposta a esse incômodo questionamento viria, possivelmente em uma peroração na qual expressões como “compromisso histórico”, “lutas históricas”  e “povo” seriam abundantemente empregadas para produzir um discurso cuja verdade em termos factuais continuaria a ser impossível de verificar-se.
O equilíbrio democrático é dinâmico. Ele não pressupõe a supremacia incontrastável nem a destruição de qualquer ator que represente interesses coletivos, mas coloca-se, necessariamente, em um espaço de negociação livre no qual a natureza desses interesses seja explicitada e sua posição na pauta geral dos interesses sociais seja situada, ainda que temporariamente, até que nova correlação de forças se manifeste. A natureza do regime democrático não é solucionar os problemas por atos de uma autoridade absoluta; é justamente manter em atividade esse espaço de negociação livre, de modo que a sentença de morte que hoje parece justa possa ser revogada amanhã quando sua injustiça parecer igualmente gritante.
A democracia é medíocre e lenta, e nisso reside sua maravilha. Ela pode errar e corrigir o erro. Depois, pode descobrir que errara ao corrigir, e refazer o que fora desfeito. As ditaduras não. Sejam elas de direita ou de esquerda, os ditadores, ou alguém por eles, são infalíveis. Eles conhecem a verdade e anteveem o futuro, e quem não percebe isso ou é um ignorante que precisa ser corrigido ou é um malicioso que precisa ser punido. Portanto, jamais a opinião discordante (chamada, então, de dissidente) deve ser ouvida e ponderada. Na democracia, quem discorda é opositor, e só deve ser combatido com argumentos, não obstante os eventuais donos do poder se sintam irritados demais para argumentar. Nas ditaduras, os dissidentes são apresentados e perseguidos como criminosos contra o Estado e contra o povo, enquanto, na verdade, são, apenas, opositores ao agir de pessoas que se arrogam a propriedade exclusiva da verdade apenas porque, em suas crenças pessoais, o sejam inequivocamente.
Pelos motivos acima expostos, sou um democrata. Posso viver sob uma ditadura, e até já vivi, mas acredito nos valores da democracia. E um dos principais valores da democracia é responsabilidade política dos agentes públicos. Não quero saber de “os políticos”, “o partido” ou “o sistema”. Quero saber quais políticos, quem no partido ou o quê no sistema. Não quero grupos demonizados, como não quero grupos blindados contra a crítica. Posso ter simpatias e antipatias, como os demais também as têm e podem ter, mas na hora de decidir cursos e ação, é preciso agir como estrategista, e o estrategista tem, a lhe dirigir o julgamento, não seus próprios gostos, mas os propósitos cuja realização deve avaliar. Em especial, o estrategista político democrático nunca pode perder de vista que se o espaço de negociação livre for fechado à ação política, acaba-se a democracia e, sem ela, quaisquer ganhos passam a depender da vontade do poderoso do dia.
A democracia, por si só, não é a solução mágica de todos os problemas. Por outro lado, é possível receber benesses em uma ditadura. O que não é possível na ditadura é ter direitos. Eu sei que não existem soluções miraculosas e não quero benesses, eu quero direitos, e direitos para todos. Isto só é possível dentro de uma ordem jurídica que, se insatisfatória, deve ser aperfeiçoada, nunca abolida.

Portanto, se me disserem que é preciso destruir isso ou aquilo, eu perguntarei: Destruir? Mas destruir o quê, exatamente? Punir? Mas punir a quem, exatamente? E se me sugerirem um slogan como “todo poder ao povo” ou a qualquer outro coletivo que nada significa, eu direi que sou contra, sem mesmo perguntar quem é, neste caso, o “povo”, porque qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos que seja apresentado em resposta certamente não merece todo o poder. O poder não precisa ser dado ao povo. Na democracia, ele já o tem. Apenas, no caso brasileiro, parece que só agora ele está descobrindo isso.

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