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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Madame de Sevigné, dona Dilma e a liderança da oposição

A marquesa de Sevigné (nascida Marie de Rabutin-Chantal) foi uma escritora francesa que viveu entre 1626 e 1696, praticamente durante o reinado de Luís 14, o Rei Sol. Em época na qual as mulheres ainda não se destacavam pelas atividades intelectuais, ela tornou-se famosa pela contribuição à literatura epistolar de seu idioma.  Suas cartas à filha, narrando o cotidiano, além de primorosas, guardam valiosas informações quanto à vida no século 17, enriquecidas não apenas pelas minúcias dos acontecimentos, mas pelas reflexões com que a marquesa as acompanha.
Em uma de suas cartas, Madame de Sevigné conta uma peça que o rei Luís 14 pregou ao marechal de Grammont, fidalgo de antiga estirpe.  Diz a autora que, um dia, o rei mostrou ao cortesão um madrigal, forma poética então em grande voga, e lhe disse:
– Senhor marechal, leia, por favor, este madrigal e diga-me se já viu algum mais tolo e ridículo, porque desde que se soube que eu gosto de poesia eu os recebo de todas as qualidades.
O marechal leu e respondeu:
– Senhor, Vossa Majestade julga divinamente bem acerca de todas as coisas.
– Não é verdade, senhor marechal, – prosseguiu o rei – que quem o redigiu é um idiota?
– Senhor, – disse o marechal – não há como chamá-lo de outra maneira.
Então o rei, retomando o madrigal, concluiu:
– Senhor marechal, obrigado por ter falado com tanta franqueza.  Fui eu mesmo que o fiz.
O marechal, em pânico, pediu:
– Senhor, que traição! Devolva-me o madrigal.  Eu o li de modo superficial.
E o rei:
– Não, senhor marechal, as primeiras palavras são sempre as mais sinceras.
Madame de Sevigné informa que o rei riu muito dessa bobagem, e assim toda a corte, que considerou ser esta a pior pequena maldade que se pode fazer a um velho cortesão.
A história do madrigal me veio à mente ouvindo o primeiro pronunciamento de D. Dilma Rousseff, recém eleita presidente do Brasil.
O discurso foi primoroso. Completamente diferente de tudo que se viu e ouviu na campanha eleitoral. Foi um discurso ponderado, com altitude de estadista. Quase desprovido de emoção, valeu pela precisão técnica, em termos de conceitos e oportunidade. Embora não tenha tocado em todas as questões que precisarão da atenção presidencial, arrolou muitas das mais importantes, chegando ao cúmulo de deixar entrever uma intenção de ajuste fiscal, sem usar, é claro, esta expressão, que soa como palavrão aos ouvidos do PT.
Prometeu responsabilidade e combate à corrupção e ofereceu aos que não a acompanharam não um chamamento ao adesismo, mas a proposta de uma convivência digna e democrática.
Durante o discurso, tentei imaginar aquelas frases na boca do presidente Lula, mas nada mais distante da retórica do antigo líder operário.  Em vez disso, a voz que se insinuava era a do deputado e ex-ministro Antônio Palocci, que, aliás, acompanhava a presidente eleita o tempo todo, desde que ela saíra de casa.
Palocci é um homem de grande sensibilidade política, ameno no trato e excelente negociador, além de ser dotado de bom descortino.  Foi execrado pelo episódio da quebra ilegal do sigilo bancário de um cidadão cujo depoimento em Comissão Parlamentar de Inquérito comprometeria o então poderoso ministro, afirmando sua presença em uma casa mais do que suspeita, onde Palocci afirmava nunca ter estado. Afastado, por isso, do cargo, ele foi julgado e absolvido de todos os malfeitos que lhe foram imputados. Portanto, mesmo que não seja um integrante das coortes angélicas caído, por descuido, na face da Terra, é um político bastante aceitável, mesmo em tempos de ficha limpa.
Ao ouvir D. Dilma, desejei que, como afirmou o rei de França, na narrativa da marquesa de Sevigné, suas primeiras palavras tenham sido as mais sinceras.
Mas não foi só D. Dilma que falou algo importante naquele dia.  Pouco antes do discurso da nova presidente, divulgou-se uma nota do senador eleito Aécio Neves, cujo tom é o de líder da oposição.
A nota é polida, mas representa uma atitude opositora firme e civilizada, configurando-se, também, como palavras de um estadista.  Fiquei feliz em ver que o simpático rapaz cujo maior mérito inicial era ser neto de Tancredo Neves, tendo amadurecido pessoal e politicamente e sido consagrado por uma grande vitória eleitoral no estado que governara com brilho, se havia tornado uma alternativa viável de poder, na jovem democracia brasileira.
O discurso de D. Dilma e a nota do senador Aécio assemelham-se, pela elegância e pelo conteúdo democrático, aos grandes debates entre o Governo de Sua Majestade e a Leal Oposição de Sua Majestade, na terra em cuja história foram semeados e cultivados os ingredientes fundamentais da democracia moderna.
Com eles contrasta o discurso fragmentário e um tanto desconexo do candidato derrotado, José Serra, feito bem depois que a vencedora do pleito havia falado.
Visivelmente abatido, beirou a indelicadeza e, embora tenha conclamado as forças que o apoiaram a permanecerem em combate, não convenceu como fala de uma liderança. Seu esquecimento, reparado na última hora, em citar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a completa omissão do nome do senador Aécio Neves mostram que a contrariedade e o desapontamento perceptíveis na ocasião têm uma explicação mais abrangente que a mera perda na competição eleitoral.
Voltando ao discurso de D. Dilma, desejo a ela e a todos nós que seu governo esteja à altura do discurso inaugural. E se pudesse aconselhá-la, recomendaria que meditasse as palavras de Madame de Sevigné ao fim da carta em que conta a história do madrigal: “Eu, que gosto de refletir sobre as coisas, desejaria que o rei também fizesse isso e percebesse o quanto sua posição o afasta de saber sempre a verdade”.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O público e o privado: cabem argumentos religiosos na campanha política?

Em sua obra O Conhecimento Humano: sua finalidade e limites, o matemático, lógico e filósofo inglês Bertrand Russel dedicou diversas páginas à discussão do que seja público e privado. Sua preocupação situava-se na área da epistemologia; portanto a discussão de público e privado que ele faz tem um viés epistêmico, ou seja, diz respeito ao conhecimento. De modo esquemático, público e aquilo que é ou pode ser conhecido por qualquer indivíduo, superados eventuais obstáculos de ordem prática que impedissem esse conhecimento, enquanto privado é algo que é conhecido por um determinado indivíduo, e não pode ser de outra maneira.
Essa definição é suficiente para decidir, na maior parte dos casos, se determinado conhecimento é público ou privado; em outros casos, porém, a decisão pode não ser simples. Se não vejamos: o som de um sino badalando, audível em um raio de quilômetros, é obviamente público. A confidência de um moribundo, murmurada ao ouvido de um sacerdote que lhe vá ministrar os últimos sacramentos e que, por dever de ofício, obriga-se a manter o sigilo da confissão, parecerá particular, já que não é nem pode ser conhecida por mais ninguém.
Entretanto, ela poderia não o ser, se houvesse mais pessoas presentes ou se tivesse sido monitorada por adequados instrumentos de ampliação do som, como os usados em espionagem. A opinião, porém, de qualquer ouvinte do que foi dito é estritamente privada, e continuará a sê-lo, mesmo que declarada, até porque ninguém saberá se a verbalização dela, quando seja feita, é verdadeira ou falsa.
O que se quer dizer com isso é que a confidencialidade, que é mera circunstância do segredo enunciado, não se confunde com a natureza pública que assiste a todas as declarações. O segredo não é conhecido de todos, mas poderia ser, se as circunstâncias fossem outras.
Esse uso epistêmico das noções de público e privado é diverso da definição político-institucional desses termos. Enquanto a epistemologia se refere ao conhecimento, a gestão pública reporta-se a interesses. Então, do ponto de vista político-institucional, público é o que interessa ou pode interessar a toda gente, enquanto privado é o que interessa a certas e determinadas pessoas, e só a elas pode interessar.
Os dois campos começam a misturar-se, no entendimento do homem das ruas, não afeito à abstração e ao rigor de pensamento, quando o interesse político é confundido com o interesse psicológico, ou seja, com a motivação para saber, a curiosidade.
Ora, o interesse político dirige a atenção para ações que afetam ou possam afetar a sociedade como um todo, enquanto a curiosidade individual associa-se ao desejo de sentir as emoções provocadas pelo conhecimento do inusitado e, frequentemente, do proibido. Isto pode levar à pura e simples, embora equivocada, identificação dos dois domínios, o epistêmico e institucional, imaginando-se que tudo que é público – no sentido de ser passível de conhecer-se – é público no sentido de afetar politicamente a todos.
O jogo que se faz com esses dois conceitos, distintos em princípio, tem relevância para a política partidária, seja quando se reluta em tornar público (ou seja, deixar-se conhecer) algo que tem interesse político generalizado (portanto, que é de natureza pública), seja quando se divulga (torna público) como se fosse importante algo de natureza particular, mas que muitos desejam saber pelo aspecto incomum ou escabroso.
Há alguns anos, um político e diplomata cuja homossexualidade era comentada a boca pequena pretendeu candidatar-se a prefeito do Rio de Janeiro. Alegadamente, sofreu ameaça de chantagem por um indivíduo que teria declarado a intenção de divulgar histórias de relações íntimas entre ele e o político. Provavelmente temeroso de algum efeito negativo dessas notícias sobre seu possível eleitorado, o político referido encenou uma cerimônia nupcial com uma secretária, envolvendo até mesmo o cardeal-arcebispo,  inocente e indignada vítima da farsa, tanto quanto se sabe. Ao que se comentava à época, durante a “cerimônia”, a “noiva” tratava o “noivo” por “doutor”, o que é pouco usual como demonstração de intimidade.
O político em questão poderia ter meu voto, pela sua competência e aparente probidade, em nada me interessando, como cidadão, sua sexualidade ou o modo pelo qual a exercitava – assuntos de sua vida particular. Pela farsa montada para iludir o povo acerca de um assunto que não era, repito, de natureza pública, perdeu a possibilidade de ter esse voto, porque quem se propõe a enganar seus possíveis eleitores em um assunto qualquer, particular ou público, perde, por isso, a credibilidade. Para muitos, aspectos que eles consideravam escandalosos da vida particular do político pareciam ter interesse, mas era mero interesse psicológico, curiosidade acerca de uma questão de natureza particular. A disposição para iludir o eleitorado, porém, era de interesse público, isto é, afetava quem tinha e quem não tinha curiosidade acerca da vida privada do indivíduo, solapando tanto sua credibilidade que ele, afinal, desistiu da candidatura.
John Locke contrapôs à ideia de sociedade política o conceito de sociedade civil, ambas compostas pelos mesmos cidadãos. A sociedade política refere-se a eles como súditos e eventuais controladores do Estado e a sociedade civil reúne-os como titulares de direitos intrínsecos que, não tendo sido conferidos pelo Estado, dele não dependem para serem mantidos ou derrogados. Ao Estado cabe, apenas, garanti-los. A partir de então, torna-se fundamental para a noção (moderna) de democracia a existência da sociedade civil e seu corolário, a vida privada – espaço de discricionariedade do cidadão em que o Estado não é chamado a intrometer-se.
Durante as transformações políticas que marcam a modernidade, importantes aspectos da existência foram transferidos do domínio da vida pública para o domínio da vida privada. Na tradição ocidental, a religião foi alvo desse deslocamento, tornando-se o Estado secular, isto é, não religioso. Há, porém, conceitos ideologicamente relevantes que, no passado, derivavam da religião, como verdade, justiça e os fundamentos da moral. Esses conceitos continuam válidos, mas, agora, quando de inspiração religiosa, restritos ao domínio da vida particular de quem professe a religião que os origina. 
Entretanto, persiste a necessidade deles no âmbito da vida pública. Apenas, em virtude da secularização do Estado, é preciso que a definição pública desses conceitos independa da sua versão privada, mesmo quando aconteça de serem coincidentes nas duas versões.
Para o conceito de verdade a solução é óbvia. Pelo êxito inequívoco da ciência moderna, o conceito público de verdade aceito pelo Estado secular é o mesmo que legitima o conhecimento científico. Então, as questões cognitivas podem ser politicamente tratadas – e o são, efetivamente – mediante um conceito público de verdade que não se confunde com as ideias de verdade que qualquer tipo de fé possa inspirar a indivíduos particulares, embora essas noções possam ter efeitos significativos nas vidas dos que as aceitam pela fé.
As coisas se complicam um pouco mais quando se trata de temas morais. Em um artigo publicado há algum tempo, examinei a dificuldade de se estabelecerem padrões morais indiscutíveis nas sociedades plurais, ou pluri-ideológicas. Na verdade, essa dificuldade implica que se precise definir um padrão moral comum mínimo, de natureza pública, tornado obrigatório pela Lei, convivendo com padrões particulares de moralidade que nem podem conflitar com a Lei nem ser impostos a terceiros que deles discrepem.
Essas considerações servem para esclarecer porque o Estado não pode utilizar-se de argumentos religiosos para fundamentar decisões políticas.
Se, porém, o Estado está privado dessa possibilidade, a partir de sua secularização, o mesmo não se aplica ao cidadão em sua vida particular: ele é submisso à Lei, como membro da sociedade política, e titular de uma consciência livre que orienta seu agir, como membro da sociedade civil.
Entretanto, há uma importante circunstância, desta vez na vida pública, em que essas duas esferas se encontram,. Em uma eleição, o ato público de formalizar a escolha é motivado por um elemento essencialmente privado: a opinião. Esta, sendo de natureza privada, pode lastrear-se em considerações eminentemente públicas, mas também pode ser fundamentada em questões estritamente particulares e, até, ser desprovida de qualquer alicerce racional.
É assim que argumentos morais de inspiração religiosa infiltram-se nas campanhas políticas.
Do mesmo modo que igrejas podem propugnar a eleição de seus dirigentes ou prepostos para constituírem, no parlamento, uma bancada defensora de seus interesses materiais – e efetivamente o fazem – podem, até com melhor justificativa moral, desenvolver campanhas favorecendo ou desfavorecendo candidatos cujas plataformas pareçam àquelas agremiações mais ou menos consentâneas com a saúde espiritual de seus rebanhos.
O Estado secular, que opera na esfera pública, não pode justificar a decisão política por argumentos religiosos, que são de natureza particular, mas o cidadão, no exercício de sua liberdade, pode formar sua opinião (de natureza particular) a partir de suas crenças (também de natureza particular) e agir publicamente, ao votar, motivado por elas. Dependendo de seu nível de cultura política, ele poderá deliberar por si próprio, levando em consideração a orientação de sua igreja ou de outros mentores que reconheça e respeite, ou poderá alienar sua vontade, acompanhando cegamente um comando que não chega sequer a compreender em profundidade.
A primeira hipótese é perfeitamente adequada no contexto da democracia. Nada há a objetar a ela. A segunda pode acontecer. Se é boa, é uma outra história. De qualquer modo, obviá-la não é uma questão de lei eleitoral. Depende da educação do povo.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Em favor da liberdade de imprensa

Há alguns anos, visitei o Museu do Holocausto, em Wahington, D. C., por insistência da professora Regina Igel, da Universidade de Maryland, gentil a ponto de obter da direção que eu fosse recebido como visitante especial. Sou-lhe perenemente grato pela experiência impactante, acabrunhadora, mas educativa.
Logo ao entrar, leem-se as palavras de Martin Niemöller, pastor da Igreja Luterana que se tornou a principal resistência evangélica ao nazismo na Alemanha:
Primeiro, vieram buscar os socialistas, e não protestei... porque eu não era socialista.
Depois, vieram buscar os sindicalistas, e não protestei... porque eu não era sindicalista.
Mais tarde, vieram buscar os judeus, e não protestei... porque eu não era judeu.
Em seguida, vieram buscar-me... e já não havia ninguém para falar em meu favor.
Sábias palavras!  Elas nos ensinam, desde logo, duas coisas. A primeira é que todos temos responsabilidade em defender a dignidade e a liberdade  daqueles que são discriminados e perseguidos, mesmo que não os aprovemos ou não nos identifiquemos com eles; o corolário disso é que todos aqueles que lutam por sua liberdade e dignidade ultrajada, lutam pela nossa liberdade e dignidade, mesmo que não pertençamos a seu grupo étnico, político, religioso, de gênero ou de orientação sexual. A segunda lição, não menos importante que a primeira, refere-se à tempestividade da ação: é preciso protestar antes que se instaure a situação calamitosa para a liberdade e a dignidade humana, porque, se não, será tarde demais; já não haverá mais ninguém para falar a favor da liberdade e da dignidade de todos nós.
Por que recordar essas ideias quando se vive em pleno Estado Democrático de Direito?
É preciso lembrar que a melhor sustentação da dignidade humana não é episódica, oportuna apenas quando a ofensa é exacerbada como prática brutal de lesão aos direitos humanos; isto já é a calamidade.  Antes que se tornem essas práticas “coisas da vida” com que se conviva resignadamente, é preciso preservar o clima em que tais violações são claramente aberrantes e, no caso de ocorrerem, geram punição e universal repúdio da sociedade. Esse clima é o clima da democracia.
A promoção da liberdade e da dignidade humana é a pedra de toque da democracia e, portanto, o modo mais eficiente de realizar-se é insistir, antes de mais nada, na defesa vigorosa de sua manutenção. 
Recentemente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse em entrevista: “A democracia não é um fato dado, é uma constante luta. Se a gente começa a fechar os olhos às pequenas transgressões, se elas vão se acumulando, isso tudo distorce o sentido das coisas.” 
Esta frase, verdadeira que seja, nada tem de original. Expressa o que é sabido e consabido não apenas pelos teóricos da democracia, mas por todos os que tenham alguma experiência de como, na história real, ela pode ser e tem sido usada como porta de entrada para os mais abomináveis totalitarismos.
Provocado pelo repórter de O Estado de São Paulo a dizer se, em sua opinião, o presidente Lula não estaria “desligando da tomada os aparelhos da democracia”, o ex-presidente discordou: “Sinceramente, não acho que o presidente Lula tenha uma estratégia nessa direção. Acho que a democracia tem raízes fortes no País, a sociedade é muito diversificada, a sociedade civil é mais autônoma do que se pensa, as empresas são poderosas, a mídia é poderosa. Não acho que o Lula tenha um projeto para cercear a democracia.”
Em que pese a boa opinião que expressa acerca do presidente Lula e suas intenções, Fernando Henrique não confia apenas nela para fundamentar seu otimismo. Ele aposta na força da democracia baseada na  diversificação da sociedade, na autonomia da sociedade civil e no poder das empresas e da mídia.
É interessante que as empresas e a mídia tenham aparecido juntas e, ao mesmo tempo, distintas na frase de FHC, porque a grande mídia estrutura-se como empresas.
Analisei os interesses complexos que a mídia envolve em trabalho apresentado a um simpósio internacional de estudos estratégicos, em 1990. Na verdade, parte da análise que nele se contém aplica-se a qualquer empreendimento. Trata-se das contradições ou deformações que decorrem de um conflito entre os interesses de sobrevivência e sustentabilidade do empreendimento e os interesses pessoais e imediatos de seus controladores. O que distingue a mídia, porém, é que o bem com que opera é a informação – e a informação é o insumo mais valioso para a organização da vida social no estádio presente de nossa sociedade.
Informação e democracia são irmãs siamesas, ligadas pela crença otimista do Iluminismo nos méritos infinitos da Razão. O raciocínio é: se somos todos racionais e se temos o poder da autodeterminação, só precisamos estar adequadamente informados para fazer, por maioria, as escolhas corretas. A liberdade de informação – classicamente expressa como liberdade de imprensa – coloca-se, deste modo, como constituinte fundamental da democracia. Enfraquecê-la é privar a democracia de seu sistema imunológico, tornando-a presa fácil do autoritarismo e, mesmo, do totalitarismo.
A realidade mostrou que, apesar da racionalidade humana, as massas podem ser e são manipuladas. As condições objetivas da vida social podem ser apresentadas de modo distorcido e, mesmo que não o sejam, a interpretação dessas condições pode ser orientada pela opinião expressa ou sub-repticiamente incluída pelo divulgador da notícia. Então não seria procedente o medo de que a imprensa se tornasse uma espécie de fada má da modernidade?
Além disso, a liberdade de informação implica a liberdade de informar e de ser informado. Quando o presidente Lula diz, em sua impressionante entrevista ao Portal Terra, que a mídia brasileira é controlada por nove ou dez famílias, parece dar a entender que os controladores tenham poder absoluto sobre a filtragem da informação, em detrimento, para o povo, da liberdade de ser informado.  Isto seria um obstáculo à liberdade de informação.
A opção geralmente cara aos que detêm o poder é o governo controlar a mídia, para que eles, os detentores do poder, arbitrem o que convém ou não comunicar ao povo e, sobretudo, de que modo convém que a notícia seja divulgada.
Na verdade, os controladores da mídia, especialmente os particulares, ainda que tenham grande poder, não têm poder absoluto. As mais ferozes ditaduras do século 20  testemunharam essa verdade. A divulgação seletiva é um extraordinário meio de controle, mas a pluralidade de meios de informação e, hoje em dia, a existência de recursos como a Internet tornam cada vez menos factível o controle absoluto da informação.
Se posso dar um exemplo pessoal, achei conveniente, tempos atrás, enviar um artigo de opinião a um jornal de Salvador. Embora o editor tenha considerado o texto aceitável, pedindo-me fotografia para a composição da matéria, ele nunca foi publicado. A Internet, porém, permite-me divulgá-lo sem a filtragem da política editorial de um grande periódico. Mesmo antes, porém, de valer-me da oportunidade trazida pela mídia virtual, não me ocorreu questionar o direito dos editores de preferirem outras matérias à que me havia despertado o interesse a ponto de me fazer escrever a respeito.
É verdade que sou cidadão particular, e o único prejuízo que a omissão poderia ter-me trazido seria à  vaidade de ver minha opinião em letra de forma.  E o governo? Será legítimo que um governante reclame que a mídia o atrapalhe? Como pode atrapalhar? Divulgando sistematicamente escândalos e malfeitorias que realmente aconteceram?  Na medida que a matéria se refira a ações de agentes públicos, cujos atos se refletem necessariamente no interesse público, não há notícias inconvenientes. A fraude, o engodo, a corrupção sempre fizeram parte dos comportamentos humanos, especialmente dos daqueles em posição de poder. Conhecer essas imperfeições é o primeiro passo para combatê-las.
Quando se restaurou a democracia no País, em 1985, diante das notícias de corrupção que cobriam as folhas dos jornais (e, no entanto, aqueles eram bons tempos, comparados com o agora), ouvi de mais de uma pessoa ingênua que “era melhor no tempo dos militares, quando essas coisas não aconteciam”. Não era fácil explicar-lhes que aconteciam sim, só não eram divulgadas.  É como quando o sistema de notificação de uma doença se aprimora e as estatísticas acusam um brusco incremento na incidência da mazela: ela já estava ali, só não era conhecida. E quebrar o termômetro – todos o sabem – não é o melhor tratamento para a febre.
“Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos por todo tempo”, dizia Abraham Lincoln. O Mahatma Gandhi, por sua vez, afirmava que a força da verdade contida em suas ideias é que as tornaria vencedoras, não a violência; importava, portanto, apenas demonstrar sua crença, colocando a promoção dessas ideias acima da própria vida.
No longo prazo, a história parece dar razão a Lincoln e a Gandhi, não a Goebels, que afirmava que a repetição reiterada de uma mentira a transformaria em verdade. Esta suposição pode parecer desmentida no curto prazo em termos do tempo histórico (e “curto” em tempo histórico parece um tempo enorme na escala da vida humana). Entretanto, mais cedo ou mais tarde (frequentemente mais tarde) a distorção se esboroa e a objetividade prevalece como fator determinante da construção da realidade.
Aceitando-se essa premissa, tornar disponível a informação é o melhor modo de favorecer a verdade, no longo prazo. Se estamos persuadidos de que temos razão, temos de promover nossa crença por meio de ações que tornem explícita a excelência de nossa posição, não impedir, por todos os modos, que as vozes discordantes se façam ouvir.
A democracia dá trabalho. Digamos que é 20% decisão e 80% pedagogia.  Não se pode impor às pessoas o que achamos que é melhor para elas, ainda que tenhamos fundamentos objetivos para nossa opinião. É preciso convencer.  Explicar o porquê. Até porque, nesse processo, podemos acabar, nós mesmos, convencidos de que o que pensávamos estar certo não estava.
A democracia – dizem alguns – é medíocre, porque da média do povo não brota um sábio iluminado. A democracia – dizem outros – é ineficiente, porque a pluralidade de interesses divergentes acaba produzindo uma resultante pequena para mover os acontecimentos. Mas quem nos garante que os “sábios iluminados” efetivamente o sejam?  Quem nos garante que o rumo que sofreu obstáculos seria o mais condizente com o bem público?
A grande vantagem da democracia é preservar o direito de recusa: dizer-se não ao que se acha que não convém. Se abrirmos mão desse direito em nome da confiança em uma liderança iluminada, nada poderemos fazer quando a iluminação se revelar falsa ou fugaz. Por que reclamar, dirão os poderosos em sua onipotência, se ontem nos aclamaram? Só pode ser por culpa de alguns maliciosos que, por isso, devem ser destruídos – como preconizou recentemente o presidente da República em relação a um partido político de oposição.
Talvez essas considerações revelem preocupação prematura, porque estamos em pleno Estado Democrático de Direito.  Afinal, as tentativas de se criarem mecanismos de controle da mídia não prosperaram e o terceiro mandato para o presidente da República caiu no esquecimento. A irritação do presidente Lula com o Tribunal de Contas da União, acusado de delongar as obras de seu governo, ou com a Justiça Eleitoral, acusada de impedi-lo de favorecer ainda mais sua candidata com todo o peso da máquina administrativa federal, ou com a mídia, acusada de pertencer veladamente aos partidos de oposição torna-se, nesse contexto, mera rabugice de um homem impulsivo, não uma perigosa tendência a sobrepor-se à lei e às instituições que se traduzisse em ameaça verdadeira à democracia.
É por esta linha que vai o julgamento da atitude de Lula por Fernando Henrique, quando diz: “O que ele tem é uma prática que, às vezes, excede o limite. E, quando isso acontece, eu me manifesto.”.
As palavras mais relevantes da entrevista do ex-presidente talvez sejam essas últimas: eu me manifesto.
Não se trata de declaração arrogante de quem se veja como oráculo político a corrigir os rumos do país que um dia governou. Trata-se, simplesmente, do dever de preservar a democracia, que a todos nos incumbe,  dever em relação ao qual as palavras de Martin Niemöller soam como alerta tonitroante. Isto compete ao ex-presidente, como compete a todos nós.
Faz bem Fernando Henrique em manifestar-se. Irrelevante que seja minha contribuição, eu também me estou manifestando.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Jürgen Habermas e as lições de Plínio, o Velho

Jürgen Habermas é, como se sabe, um dos mais importantes filósofos vivos.  Uma de suas mais expressivas contribuições para a reflexão atual é a teoria da ação comunicativa. A ação comunicativa de Habermas é baseada no pressuposto de veracidade.  Nela, os participantes trocam argumentos acerca de pretensões validez em boa fé, convencidos da verdade de seus argumentos e com intenção de ser transparentes para seus interlocutores quanto a suas verdadeiras intenções.
Em contraposição, a ação estratégica – aquela que se destina a levar o interlocutor a agir conforme o interesse e a vontade do locutor que se lhe opõe – não admite o pressuposto de veracidade.  Embora isso não seja obrigatório, ela pode abrigar – e muitas vezes abriga – a dissimulação e o engodo.
Como se vê, ao contrário do que imaginam os que se iludem com os nomes das coisas, a teoria da ação comunicativa não é uma teoria da comunicação.  Muito frequentemente, a comunicação reduz-se a uma ação estratégica usada para persuadir o outro a agir como seja desejado, não só por meio de argumentos, mas, também ou principalmente, de falácias ou, até, da mentira pura e simples.
Quanto a Plínio, o Velho, não é, aqui, Gaius Plinius Secundus, autor romano da História Natural, que morreu em 79 da era comum, em decorrência da destruição de Pompeia e arredores por uma erupção do Vesúvio.  Trata-se de Plínio de Arruda Sampaio, candidato do PSOL à presidência da República.
Plínio é um candidato presidencial que não pinta os cabelos.  Parece ser o único que se orgulha da idade. Sua cabeleira totalmente branca coroa a face que, durante os debates dos candidatos a presidente, mantém um permanente meio sorriso, dando-lhe a expressão de menino maroto que sabe bem a travessura que está fazendo.  Ele próprio já reconheceu que conserva sempre o bom humor.
Isto não desqualifica o velho Plínio nem lança dúvida acerca de sua seriedade.  Ao contrário. Talvez até mesmo por ter consciência de suas escassas probabilidades eleitorais, ele está ali para fazer o que todos os outros deveriam estar fazendo: transmitir sua mensagem de modo claro e inequívoco.
Só esta atitude valeria por uma lição.  Mas ele vai além: fustiga seus colegas e expõe suas tergiversações, dizendo clara e reiteradamente: “Você não respondeu minha pergunta” ou “não foi isso que eu perguntei”. 
O pior é que as perguntas são simples e diretas, suscetíveis de resposta com um sim ou um não.  Por exemplo, no debate de candidatos promovido pela Folha de São Paulo, declarou-se favorável ao aluguel compulsório de casas desocupadas e, em seguida, perguntou a D. Dilma Rousseff: “Dilma, você é contra ou a favor?”
Lembrei-me da armadilha que, segundo o evangelista, teria sido posta perante Jesus: “Mestre, é lícito ou não é lícito pagar tributos a César?”
Tal qual na pergunta dos fariseus, se D. Dilma declarasse ser contra, contribuiria, quem sabe, para alienar o eleitorado mais à esquerda, que poderia acompanhá-la em nome do “voto útil”; se ela se declarasse a favor, assustaria a classe média.  Seja por falta de inspiração divina ou jogo de cintura, seja porque a armadilha fosse de mais difícil desarme, D. Dilma nada achou que se comparasse ao famoso: “daí, pois, a César o que é de César, mas dai a Deus o que é de Deus”. Não respondeu. Preferiu fazer o elogio dos programas habitacionais do governo Lula – o “nosso” governo, como ela diz.  E Plínio, o Velho, exibindo no rosto uma expressão de “ingênua” surpresa: “Dilma, você não respondeu minha pergunta.  Não foi isso que eu perguntei.” E toca a repetir, na réplica, com irritante  (para os outros) simplicidade, a mesma indagação, que ficaria sem ser respondida: “Você é contra ou a favor?  Sim ou não?”
Em troca, recebeu de D. Dilma uma pergunta acerca da opinião dele quanto a minúcias da contratação de plataformas de exploração submarina pela Petrobrás.  Plínio, o Velho, abriu um sorriso de orelha a orelha e disse: “Ora, Dilma, não sei! Estou aqui num debate de candidatos à presidente.  Vim debater propostas de políticas. Você me pergunta sobre detalhes administrativos referentes a plataformas da Petrobrás? Não sei!”  E riu como quem se divertisse à custa da gaffe da neófita, que foi como D. Dilma parece ter-se sentido na constrangida tréplica. Plínio, nem mesmo gastou o tempo restante para manter a câmera focada nele, como faziam os outros candidatos.
Plínio, o Velho, deu verdadeira aula de como se participa de um debate. Sabe administrar o tempo, sabe o nível de tratamento dos temas, recusa-se ao bate boca e a personalizar a discussão  (aliás, reafirma sempre: “foi isto que meu partido me mandou aqui para dizer”) e deixa clara sua posição.
Não discutirei essa posição.  Respeito as ideias verbalizadas por Plínio como respeito quaisquer ideias que sejam afirmadas por alguém como fruto de sua convicção.  São as ideias clássicas de uma esquerda do tempo da guerra fria.  Se concordo com elas é uma outra história.  Mas concordando ou não, é a atitude clara e franca de Plínio que me permite conhecê-las e, com base nesse conhecimento, dar-lhe ou negar-lhe meu voto.
Agindo como age, especialmente quando chama a atenção dos seus interlocutores para a necessidade de expor-se (o que parece causar-lhe intenso e consciente divertimento), Plínio oferece aos telespectadores uma lição prática da diferença entre ação comunicativa e ação estratégica em Habermas.
A ação comunicativa tem como modelo a discussão racional:  a troca de argumentos em favor de pretensões de validez que leva ao consenso verdadeiro.  Esta seria a expectativa para um debate político: os candidatos exibindo suas ideias em busca de convencerem uns aos outros e o povo da verdade da seguinte proposição: "meu programa de governo é o mais adequado ao País no momento histórico em que se encontra."  Mas não é isso que se vê.  O que se vê é o discurso orientado pelos marqueteiros a partir de pesquisas que indicam o que o eleitorado quer ouvir para ser movido a votar em um candidato.
Não é atoa que D. Dilma diz e repete o “nosso” governo, transmitindo a messiânica mensagem: “eu e o Pai-Lula somos um”.  É isso que sustenta sua pretensão eleitoral, não a competência que ela efetivamente tem.  Então para quê programa? Para quê definir-se a respeito do que pode tirar votos?
O debate político eleitoral é pura ação estratégica em um circo montado para que os candidatos ocultem ao máximo as ideias que possam merecer a desaprovação de algum eleitor – isto é, praticamente todas. A mensagem final é: vote em mim para ser feliz, tal qual um desodorante sugeria que quem o usasse ficaria com “cheiro de mulher bonita”.
É por isso que Plínio, o Velho, tem alguma razão quando diz: “Eles são todos iguais. Só eu sou diferente aqui.”  E é mesmo. Se não for pelas ideias, será pelo comportamento exemplar como participante de um debate.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Passa, passa, gavião, todo mundo é bom

Quando era criança, meninos e meninas brincavam de roda ao som de cantigas românticas ou bizarras.  Mesmo bem garoto, lá pelos meus cinco anos de idade,  já achava que esta letra, especialmente, era um completo absurdo: passa, passa, gavião, todo mundo é bom. Cantava-se andando em roda, de mãos dadas. Em seguida,  os participantes soltavam-se as mãos e, mantendo a roda, roçavam os punhos fechados um no outro, enquanto cantavam: as lavadeiras fazem assim, assim, assim. 
O que poderia ter um gavião que passa a ver com a qualidade das pessoas e, menos ainda, com o ato de esfregar roupa das lavadeiras?  Só muito depois vim a saber que se tratava de uma desvairada tradução, por similaridade fonética, de uma canção francesa, que diz: Sous le pont d’Avignon, tout le monde y passe. A letra diz que as pessoas passam pela ponte de Avinhão e veem, junto ao rio, as lavadeiras exercendo seu ofício (por isso a gesticulação, acompanhada do “assim”, “assim”).
O que tem isso a ver com o momento que estamos vivendo?  Tudo!
Vejo nos jornais a foto de D. Erenice Guerra desembarcando do governo às pressas, para que a campanha presidencial de D. Dilma Rousseff não seja (mais) salpicada por um novo escândalo, dos muitos deste governo, desta vez protagonizado pela família de D. Erenice.
Em vez da cívica indignação que deveria assaltar meus brios de cidadão ante a rasteira rapacidade dos que se cevam no Estado por conta do poder de um parente no governo, lembrei-me, com cínico desencanto, da cantiga de roda: passa, passa, gavião.  No final das contas, o resultado vai ser que todo mundo é bom.  É justamente o absurdo da canção infantil o que a torna adequada para associar-se ao Brasil do presente.
A semelhança dos absurdos começa pela tradução ignorante, não da letra, mas dos mecanismos da vida democrática e republicana, importada de outros povos sem a base histórica que nos vacine ou alerte contra certas mazelas que podem vicejar no governo do povo, pelo povo e para o povo.  É isso que nos faz confundir líder populista com líder democrático e exercício do governo com aparelhamento do Estado – tal qual as que crianças adaptavam sous le pont d’Avignon, tout le monde y passe como passa, passa, gavião, todo mundo é bom, como se isso fosse algo que se aproveitasse.
Nossa vida política segue, evidentemente, a versão brasileira da música.  Exatamente porque não temos em nosso DNA histórico o horror aos golpes contra o interesse público e temos com o governo uma relação espúria de paternalismo do poder contra a correspondente concepção adolescente de que exercer a liberdade implica enganar o pai governo, ou, pelo menos, as partes dele que representam controle, nossa leniência com os malfeitos da vida pública caracteriza-se não apenas pela sua intensidade elevada, mas, também, por uma estranha seletividade.
Explico melhor: a violação da lei pelos agentes políticos ou com sua bênção não os desqualifica sumariamente a nossos olhos.  Permitimo-nos condenar certos crimes em determinadas condições e desculpar os mesmos crimes quando outros os praticam, ou o fazem em diferentes circunstâncias.  A violação em si não nos escandaliza; seu propósito é que nos pode escandalizar ou não.  
Os próprios crimes que nos escandalizam são tolerados e esquecidos quando uma contrafação de processo, viciado pelo corporativismo, exime os culpados de punição, mesmo quando a inocência dos perpetradores não seja acreditada por quem os julga.  Absolve-se pelo poder de absolver e na expectativa de uma troca de favores similares na hipótese de que uma pesquisa mais funda da corrupção endêmica transforme os juízes de hoje nos réus de amanhã. Hodie mihi, cras tibi – hoje é comigo, amanhã será contigo – é o dito latino que parece sintetizar a defesa genérica dos envolvidos.  
Os atos de improbidade em benefício financeiro próprio (“roubar”, na linguagem coloquial) parecem-nos, equivocadamente, mais graves do que os atos de improbidade que se destinam a fortalecer um projeto político-partidário, seja robustecendo os cofres do partido para financiar suas campanhas, seja enfraquecendo as instituições, ao corromper agentes políticos ávidos de propina financeira ou outras facilidades, ofertadas pelo poder da caneta que nomeia e demite ou pela burra do dinheiro que lhes paga benesses por debaixo dos panos (ou, sem que o saibam, diante das câmeras ocultas).
O escândalo do mensalão só incomodou a fundo meia dúzia de ranzinzas – eu entre eles – que se preocupam com a natureza das relações entre governo e Estado, entre governo e sociedade e entre Estado e sociedade.  Para o povo em geral, trata-se de delito menor, porque a vultosa soma movimentada não foi para o bolso do presidente Lula nem do ex-ministro José Dirceu. Pela alegada ação de um e ostensiva omissão do outro, praticou-se, contra as instituições, um crime que a poucos comove, porque os alegados mentores da ação, afinal, não “roubaram”, apenas “facilitaram a governabilidade” e “robusteceram seu projeto politico”.  No dizer o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos foi “só” um caixa dois.  Isto seria tão rotineiro que chegaram a dizer, no Congresso, que todo mundo faz.  Para que o vexame nacional não fosse irremediável, foi preciso que o senador Saturnino Braga saltasse lá do fundo da sala exclamando: todo mundo uma pinoia! EU não faço.  Após um instante de constrangimento, esqueceu-se convenientemente o excêntrico, que aparentava ser espécime único entre seus pares – um animal em extinção.
O que incomoda, agora, no caso dos familiares de D. Erenice é que há indícios de proveito pessoal auferido por conta do acesso privilegiado a servidores do Estado e a decisões de governo, o chamado tráfico de influência. Perguntada sobre o assunto por uma jornalista, no debate de candidatos presidenciais da Folha de São Paulo, D. Dilma Rousseff deu uma resposta que talvez lhe tenha parecido acachapante: se o filho de um funcionário da empresa em que você trabalha (ela teve a delicadeza de não dizer seu filho) praticar atos errados, a culpa é do presidente da empresa?
A réplica era proibida aos jornalistas. Se não fosse, possivelmente D. Dilma ouviria algo mais ou menos assim: a senhora não construiu a situação análoga adequadamente. A analogia ocorreria se o filho do meu colega tivesse praticado atos lesivos à empresa em decorrência do acesso privilegiado de que desfrutasse por conta de uma especial intimidade que o  presidente da empresa lhe concedesse, qualquer que fosse o motivo.  A palavra chave, é “acesso privilegiado”, o que é, no caso, redundante: o simples fato de haver acesso já é, nos ambientes em que os alegados fatos ocorreram, um privilégio.  Se um indivíduo tem acesso ao mais alto escalão, os titulares de escalão intermediário, seja por um julgamento ingênuo acerca do merecimento de confiança, seja por simples aulicismo, para agradar aos poderosos do dia, abrem-lhe franquia igual em suas esferas de atuação.  É claro que isto não os exime de cumplicidade no malfeito, por ação ou omissão, mas a responsabilidade de quem garantiu o acesso maior não pode ser escamoteada, como acontece na simplificação que a senhora formulou.
Esta seria uma réplica educada e certamente a jornalista pensou algo parecido, que lhe morreu na garganta, sufocado pelas regras do debate.  Mas a réplica que não foi dada, estava, com certeza, nas mentes das pessoas – de D. Dilma, dos mentores de sua campanha e até do presidente Lula, cuja insuficiência em educação formal é, para este efeito, largamente compensada por aguda argúcia política.  Os parentes de D. Erenice só tiveram acesso aos postos e contatos que utilizaram porque ela estava no poder, e ela só esteve no poder pela amizade, ou confiança, ou ambas, a ela dedicadas por D. Dilma Rousseff.  É evidente que D. Dilma não é responsável pelos atos do filho ou de outros parentes da amiga e  ex-colaboradora, mas também é verdade que o acesso e a credibilidade dessas pessoas ante funcionários do governo é decorrência direta e inseparável da amizade e confiança que D. Dilma deposita ou depositou em D. Erenice.
A circunstância de uma possível participação oculta da própria D. Erenice em uma empresa da qual não é sócia ostensiva, mas em que teria interesse por meio de interposta pessoa – um laranja, na linguagem vulgar – não a favorece.  O uso de laranjas, ainda que fosse para ocultar, por modéstia, uma benemerência, desperta naturalmente suspeitas.  Afinal, quem não tem o que esconder, mostra a cara.
Então o governo foi rápido e D. Erenice foi exonerada “a pedido”, ou seja, honrosamente.  Talvez, assim, não se fale mais nisso, já que os envolvidos estarão, agora, fora do poder.  Os gaviões, quem sabe, travestir-se-ão como inocentes pombas, e passarão, passarão.  Feitas as contas, todo mundo é bom. 
Só fica faltando explicar as lavadeiras, fazendo “assim”, “assim”.  Com tanta sujeira para lavar, elas não param tão cedo.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Precisa-se de um bom partido

Não, não se trata de um anúncio classificado pessoal em que uma donzela casadoira procura um rapaz de bens profusos e aristocrática família.  Tampouco é o apelo de algum jovem promissor em busca de herdeira rica para dar o golpe do baú. Trata-se de declarações do sr. José Dirceu, discursando para cerca de cem militantes, segunda-feira, 13 de agosto, no Comitê dos Petroleiros, em Salvador. Esclarece o jornalista Vítor Rocha,* autor da reportagem, que, ao falar, ele "não havia percebido a presença da imprensa". Não tendo havido desmentido, tomo por autênticas as informações veiculadas.
Disse o sr. José Dirceu: "Nós temos que voltar a transformar o PT numa instituição política, para o que ele foi criado, e uma instituição política tem valores, tem programa".
Essas declarações seriam de estarrecer, se o estarrecimento não estivesse tão fora de moda quanto as donzelas casadoiras acima referidas, que, na era vitoriana, desmaiavam diante de qualquer acontecimento mais vívido. Entendo que a declaração foi feita para um grupo de simpatizantes, em reunião fechada. Talvez o ex-ministro não tivesse burilado a frase.  Por outro lado, as mesmas circunstâncias que desculpariam um descuido com a linguagem são propícias à franqueza. Vale a pena, portanto, analisar o dito, para que se revele o pensamento que o inspirou.
Essa análise impõe quatro perguntas: Por que o PT não é uma instituição política? Se não é uma instituição política, o que é o PT?  Por que o PT, que foi criado para ser uma instituição política, deixou de sê-lo? E por que, agora, é preciso que volte a ser aquilo para que foi criado?
A primeira questão parece ter sido respondida pelo sr.José Dirceu na própria enunciação que se examina: o PT não é uma instituição política porque ter valores, ter programa são condições necessárias das instituições  políticas. O corolário desta afirmação -- afirmado por Dirceu, não por mim -- é que o PT não tem valores, não tem programa.
Dizer-se que o partido que abriga em seus quadros o presidente da República não tem valores, não tem programa, é de arrepiar os cabelos (horresco referens, diriam os antigos, repetindo Virgílio).  Entretanto, repito, quem diz isso não sou eu, que não conheço a intimidade do PT (embora tenha sido amigo pessoal de alguns dos intelectuais que o partejaram em sua fundação).  Quem diz isso é José Dirceu, que a conhece muito bem.
Mas vamos adiante. Se o PT não é uma instituição política, o que ele é?
A frase de Dirceu não ajuda muito; ele nada diz a este respeito. Na opinião fundamentada do Procurador Geral da República que ofereceu denúncia contra 40 ilustres personalidades, entre elas José Dirceu, no caso do mensalão, denúncia acatada pelo ministro Joaquim Barbosa, referendado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, a resposta está em um epíteto desagradável: organização criminosa. Sem pretender discutir argumentos jurídicos já examinados por mais doutos do que eu, peço vênia para discordar. A análise cuidadosa da frase de José Dirceu me revela que se faltam valores, a hipótese da criminalidade não pode ser liminarmente descartada, mas, se faltam programas, certamente não se trata de  organização. Se não é uma organização é, possivelmente, uma desorganização e não pode haver uma desorganização criminosa, porque, pelo simples fato de ser uma desorganização, não se pode falar de uma ação unitária e integrada de todos os seus membros. 
Juntando José Dirceu com o Procurador Geral, parece que se trata de uma desorganização, dentro da qual há ou houve membros que agiram de modo possivelmente delituoso, ensejando uma denúncia aceita pelo Supremo, que os está processando na forma da lei. Talvez por isso, o homem que foi apontado como alma danada do mensalão ressinta-se da ausência de valores.
Mas o que terá feito com que o PT, que, nas palavras de Dirceu, foi criado para ser uma instituição política, não o seja mais? A pista para a resposta está em outra de suas frases: "Lula é duas vezes maior que o PT". 
Na Bahia, há uma saborosa expressão -- espaçoso -- que descreve pessoas cujos atos, bem intencionados que sejam, afetam, constrangem, incomodam os que estão por perto.  O "espaçoso" é um indivíduo que transborda de seu próprio espaço para ocupar, às vezes inadvertidamente, o espaço alheio, coibindo a iniciativa do outro, perturbando seu equilíbrio, alterando, a sua revelia, o curso de ação em que estão todos envolvidos.  Ora, dizer que "Lula é duas vezes maior do que o PT" implica reconhecer em Lula um "espaçoso" político e nenhuma instituição política sobrevive ao personalismo de um líder que seja duas vezes maior do que ela. Ela ainda poderá ser um mecanismo de ação, o braço político de uma milícia, mas não mais uma instituição política viva e originadora de seu própio agir.
O descompromisso de Lula com o programa do PT criou, no começo de seu governo, incidente resultante na expulsão ou desfiliação de políticos que desejavam manter-se fieis a suas origens --  e Dirceu sabe disso, porque, à época, era todo-poderoso no governo e no partido. Este modo de proceder acaba com qualquer identidade programática. Não sei se raciocínio análogo explica o desaparecimento dos valores, e não quero especular; tento, apenas, compreender, em profundidade, o conteúdo da manifestação de José Dirceu.
Entendido, então, o que é o PT e de que forma ele se tornou assim, por que precisa voltar a ser aquilo que jamais deveria ter deixado de ser?
O esclarecimento de José Dirceu é chocantemente franco: "A Dilma não é uma liderança que tenha uma grande expressão popular, eleitoral, uma raiz histórica no País como o Lula teve, como o Brizola, o Arraes, e como [...] o próprio ACM que [...] era uma liderança popular. [...] A eleição da Dilma é mais importante do que a eleição do Lula, porque é a eleição do projeto político, do nosso acúmulo de 30 anos, porque a Dilma não se representa". (Grifei.)
Essas palavras, ditas por quem as disse, merecem um comentário de muitas páginas. Mesmo tentando  restringir-me, raciocinando de modo bem esquemático, não há como ser breve.
Afirma Dirceu que Lula é uma liderança popular, como foram Brizola, Arraes e ACM. Logo a seguir, diz que "a Dilma não se representa". Parece concluir-se que Lula "se representa" tal qual Brizola, Arraes e ACM, antes dele, "se representavam".  O que será, neste contexto, representar-se?
Na teoria democrática, os eleitos representam seus eleitores, não a si próprios. Se a frase fosse do presidente Lula, os ouvintes ou leitores poderiam atribuir a estranha construção à imprecisão dos conhecimentos presidenciais em relação à teoria política (por contraste com sua mestria no manejo da política partidária). No caso do ex-ministro, não se aplica essa suposição. José Dirceu é formado em direito e seu conhecimento da práxis política é amplo e robusto, tanto prática quanto teoricamente. Então, a construção usada não decorre de um lapso; ela tem significado. Qual será?
As "lideranças populares" a que Dirceu se refere foram ou são políticos que desfrutaram ou desfrutam de um grupo expressivo de seguidores prontos para aplaudir e acatar incondicionalmente seu líder. Trata-se de uma adesão afetiva, um "ismo", feito antes de paixão que de ponderação.
Embora seja difícil distinguir-se uma coisa da outra pela aparência, há uma diferença fundamental entre a unidade de pensamento decorrente de uma identificação afetiva -- o que se chama tecnicamente homonoia -- e unidade semelhante que deriva do convencimento produzido pela troca de argumentos racionais, aceitos, apesar da atitude crítica de quem os recebe, pelo seu imperativo lógico  -- o que se chama tecnicamente consenso.
Os líderes que estão à frente da homonoia (que, na verdade, eles promovem) não verbalizam a vontade de seus seguidores; eles os persuadem de que a vontade dele, o líder, é, incondicionalmente, a vontade dos seguidores.  Os líderes que estão à frente de um consenso, verbalizam uma síntese da vontade de seus seguidores, seja porque dela partilham, seja porque entendem que é o que lhes compete fazer na função de representar.  Então, os líderes que verbalizam o consenso -- a forma de liderança preconizada pela teoria da democracia representativa -- representam seus liderados, não a si próprios.  Os líderes que verbalizam a homonoia, na verdade "se representam", embora aparentem representar seus liderados, porque a vontade dos liderados foi incondicionalmente alienada ao líder, que a corporifica.
Ora, Dilma não se representa porque ela não é uma liderança que polarize uma homonoia  -- como é Lula e como foram Brizola, Arraes e ACM.  Mas ela não é, tampouco, a representante de um consenso; é, antes de mais nada, a destinatária da ratificação encomendada por Lula a seus seguidores. Portanto ela nem se representa nem representa seu eleitorado.
A quem representa ela então? 
Para José Dirceu, ela representa "o projeto político, [o] nosso acúmulo de 30 anos".
A proposta de Dirceu parece clara:  é preciso ressuscitar o PT como instituição política para que Dilma o represente. A questão é: esse "projeto político" tem sua unidade calcada em uma homonoia que Dilma inspira ou ele determina um consenso que ela deve representar? 
Terminaria por aí a análise não fosse o suspeitíssimo projeto de hegemonia que o grupo de Dirceu perseguiu em seu partido, tendo Lula como bandeira.  Para alguns, Dirceu é a verdadeira cabeça pensante desse grupo.  A ser verdade essa interpretação, a semi democrática hipótese de Dilma representar seu partido restaurado (a verdadeira hipótese democrática é que ela represente politicamente seu eleitorado e institucionalmente todo o povo) acabaria significando sua tutela pelo grupo hegemônico que dominasse o partido.
Em termos de história partidária isso pode parecer factível, e talvez seja mesmo.  Mas há complicadores.  Lula, tendo provado o néctar do Olimpo político, nacional e internacional, admitirá ter um papel secundário no controle da situação, ele que é "duas vezes maior que o PT"?  Dilma será submissa à orientação de Dirceu em nome da supremacia passada do ex-ministro, quando se sabe que a política partidária é feita de expectativas, não de gratidões?
Embora não negligencie a capacidade de articulador e planejador do Sr. José Dirceu, sou um otimista: acredito que a jovem democracia brasileira veio para ficar.  Além disso, aposto no temperamento de D. Dilma e no seu descortino de tecnocrata fraturando seu verniz ideológico.  Acho muito difícil que D. Dilma seja, ao longo de seu mandato, pau mandado de Dirceu ou de Lula. Ela pode até tentar ser submissa, mas não acredito que vá conseguir. 
Se realmente o PT reestruturar-se como uma instituição política sob o domínio de um grupo hegemônico que, em nome do partido, pretenda tutelar a presidenta, creio que haverá turbulência.  E não é disto que o Brasil precisa.  O Brasil precisa de um bom partido que exerça a função de governo democraticamente, e  de pelo menos um outro bom partido que faça uma oposição firme e consciente, que se oponha democraticamente. É disto que se precisa, de um bom partido.  

*Reportagem publicada no jornal A Tarde, 14/09/2010, p. B10. Apesar da igualdade de sobrenomes o repórter não é parente e nem mesmo conhecido do autor deste comentário.

domingo, 12 de setembro de 2010

Seis e meia dúzia

Isto é trocar seis por meia dúzia, diz o povo quando quer sublinhar que uma substituição imaginada nenhuma mudança substancial trará.
Um parente meu, quando tinha seus cinco anos de idade, estava aprendendo a usar o telefone.  Naquele tempo, o telefone era discado, e a avó ensinava à criança como se faziam ligações. O número que o menino ia discando continha o algarismo 6, que a avó enunciou como meia dúzia. O garoto discou o 6 e perguntou: "vó, o meia eu já disquei; onde é o dúzia?"
Esta história realmente acontecida parece indicar que há alguma diferença entre seis e meia dúzia, embora, no fundo, sejam a mesma coisa.
Com essa ressalva, animo-me a dizer que trocar um governo do sr. José Serra por um governo de D. Dilma Roussef é trocar seis por meia dúzia.  É claro que os dois seriam diferentes nas minúcias, mas o quadro geral será o mesmo.
Esta é uma daquelas afirmativas ousadas, especialmente em vésperas de eleição, que garante a quem a faça o justificado ódio dos dois lados.  Como assim?  O meu candidato (ou minha candidata) é a salvação do Brasil; a outra (ou o outro) é a ruina! O corolário desta crença facciosa será acusar o autor de senilidade, idiotice ou pura e simples ignorância crassa, quando não de malícia intencional.
Insultado o autor e recuperado o coração dos arroubos de indignação partidária, vamos aos argumentos.
Conforme tenho defendido em outras oportunidades, a capacidade de ação de um governante sensato é fortemente limitada e, mesmo, determinada, por acontecimentos que não estão sob seu controle.
Houve, no Brasil, em 1964, um golpe militar que só aconteceu por causa da  chamada guerra fria e do modo pelo qual ela se travava na América Latina. Vinte anos depois, a ditadura dele decorrente esgotou-se, porque a guerra fria chegara ao final, em razão de um impasse: faltou-lhe combustível econômico para continuar e, então, era aquecer-se e provocar o holocausto nuclear (e nenhum dos líderes mundiais que podia fazê-lo foi louco o suficiente para isso), ou extinguir-se, transformando-se em uma nova ordem mundial geradora de guerras de outra natureza.
Alguém argumentará que houve muitos acontecimentos, no Brasil, que propiciaram a restauração da democracia. Houve, sim, e a valoração deles em termos de apreciação e efetividade dependem da posição ideológica do narrador. Na verdade, enquanto os cães dos acontecimentos domésticos ladravam, a caravana da história, que não é mais nacional no mundo globalizado, passava.
Novamente, os críticos que me leram até aqui (muitos já terão abandonado a leitura do que considerarão um amontoado de sandices) vão dizer que a incorreção desta análise é demonstrada pela existência de outros países em que os acontecimentos não ocorreram do modo pelo qual tudo se passou no Brasil.  Sim, é verdade, mas esses países não são o Brasil.
E o que tem o Brasil de especial?
Nas vésperas da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso, estava eu apresentando um seminário no Industrial College of the Armed Forces, órgão da National Defense University dos Estados Unidos, a convite do dr. Robert Schina, um historiador respeitado que coordenava o curso, quando um dos alunos me perguntou: "professor, em sua opinião o Brasil pode prosperar economicamente?"
Abreviando aqui a resposta que dei na ocasião, disse que sim, e justifiquei meu otimismo pelo efeito drástico que o êxito ou fracasso econômico do Brasil teria para os prospectos da economia... dos Estados Unidos, considerada a cascata de consequências que acarretaria.
Pouco mais tarde, viu-se o ataque especulativo contra os chamados Tigres Asiáticos e o desenvolvimento deles foi severamente afetado. Viu-se o ataque especulativo contra o rublo e a Rússia quase naufragou. (Quase?) Enfim, viu-se o ataque especulativo contra o real e, pela primeira vez na história , um presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, desenvolveu gestões junto aos órgãos financeiros internacionais no sentido de fortalecer a economia brasileira, ao mesmo tempo que o próprio Tesouro americano abria linhas de crédito para o Brasil.
Teria sido isto um indício de generosidade ou apego afetivo? Claro que não! Tal coisa não existe em política internacional. O que acontecia é que a economia brasileira tinha de dar certo, porque outros interesses assim exigiam.
O que quero mostrar é que o Brasil, já naquela época e muito mais agora, é peça fundamental no jogo mundial. Deixou de ser um peão que pode ser sacrificado em um gambito qualquer.
A política de desenvolvimento e projeção internacional do Brasil, iniciada com Getúlio Vargas, negociando a usina siderúrgica de Volta Redonda como contrapartida à cessão da base americana de Natal, na segunda guerra mundial, continuou com o desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, com a política de Brasil grande dos militares, com a diplomacia presidencial de Fernando Henrique Cardoso e com a polêmica política externa de Lula. Trata-se de uma linha permanente, passando incólume por governos de diversa ideologia, de diversa base política e de diversa legitimidade. Hoje, tendo frutificado os remédios, às vezes amargos, de um relativo saneamento econômico (há, ainda, fragilidades por combater) o Brasil dá-se ao luxo -- duvidoso, é bom que se diga -- de meter-se na briga de cachorro grande que é o programa iraniano de energia nuclear. 
O que tem tudo isso a ver com Dilma e Serra?  Tem tudo a ver. É tudo isso que os torna uma versão eleitoral de seis e meia dúzia.
O que Serra diz que quer fazer é o que Dilma terá de fazer logo depois de afagar seu eleitorado e seu presidencial patrono, que talvez tenha na competência administrativa dela um adversário insuspeitado ante a inexpressividade política de sua origem.
Até as pedras da rua (que ainda têm pedras) sabem que se o Brasil não investir urgentemente em infraestrutura não poderá crescer no ritmo de que os brasileiros necessitam.  Mas isto nada quer dizer.  Ninguém lá fora está preocupado -- como nunca esteve -- com o que os brasileiros precisam ou deixam de precisar.  Mas se o Brasil não puder manter um crescimento sustentável a médio e longo prazo, o mundo sofrerá as consequências.  Então o Brasil tem de crescer e, seja qual for o presidente ou a presidenta, é melhor que ele ou ela faça seu dever de casa. 
O dever é o mesmo e as respostas são iguais, tanto Serra quanto Dilma sabem disso. Portanto, feitas as contas, o resultado é seis... ou meia dúzia, tanto faz.

sábado, 11 de setembro de 2010

Dona Dilma, o poste o o cardeal Roncalli

Na Bahia, dizem que o falecido senador Antônio Carlos Magalhães vangloriava-se de ter tão completo domínio sobre o eleitorado que seria capaz de eleger um poste.  O "poste", na verdade, era a metáfora para indicar um político desconhecido e desprovido de qualquer brilho.
Não sei se o senador algum dia exercitou a propalada capacidade. Os adversários de seus apaniguados eleitos dizem que sim. Os próprios dizem que não, que seus méritos, se não tiverem sido determinantes para a eleição, foram a ela indispensáveis.
Estas considerações vêm a propósito do fenômeno eleitoral de D. Dilma Rousseff. Seria ela um "poste" a ser eleito pela vontade do presidente Lula?
Observadores apressados talvez digam que sim, e até esperem que, mesmo não sendo um "poste", a possível eleita venha a ser fantoche de seu inventor.  Até a excelente jornalista Dora Kramer, em um de seus sempre lúcidos comentários, afirma que a criatura não se poderia voltar contra seu criador, sob pena de ser politicamente destruída.
Peço licença para discordar das duas teses. D. Dilma não e um poste e nem será um fantoche.
Aliás, os pretendidos "postes" não costumam ser fantoches. Na Bahia, em 1982, o senhor Clériston Andrade, candidato a governador patrocinado por Antônio Carlos Magalhães, morreu em trágico acidente, às vésperas da eleição. Sem que por isto se neguem ou afirmem as possíveis qualidades do senador João Durval Carneiro, escolhido para substitui-lo como candidato, há indícios de que foi a capacidade eleitoral de ACM que o catapultou ao governo sem ter tempo de fazer campanha.
Pois bem, como governador, João Durval foi tudo, menos fantoche de ACM, o que ocasionou a ruptura entre ambos.
Não imagino D. Dilma elegendo-se e rompendo com o presidente Lula.  Ao contrário. Imagino D. Dilma assoberbada pelas forças conflitantes que pensam poder dominá-la: Lula de um lado e o PT do outro.
O PT não manda em Lula; é Lula que manda no PT.  Mas Dilma... O PT está ansioso para ter um quadro seu na presidência, um quadro que possa -- pensam eles -- ser submetido à disciplina partidária.
Lula não.  Lula está para o PT, mal comparando, como o padre Vieira para a Companhia de Jesus, no dizer do padre Manuel Bernardes: "mais honra faz ele à Companhia que a Companhia a ele".
Então Lula manda no PT e, por enquanto, em D. Dilma também.
Acredito -- apenas acredito -- que D. Dilma tentará apaziguar o PT e não decepcionar Lula.  Isso perturbará, talvez, os dois primeiros anos de seu governo.  Mas dizem que D. Dilma tem pavio curto.  Vai chegar um momento em que ela vai perceber que não pode deixar de governar para atender a exigências ideológicas ou fisiológicas do partido. Um pouco depois, talvez, a notória diferença de capacidade administrativa (não estou falando de capacidade político-eleitoral) entre D. Dilma e seu patrono, a favor dela, vai fazer com que ela o decepcione, por mais que tente não fazê-lo.  Então, as exigências das conjunturas nacional e internacional, especialmente esta, falarão mais alto, e D. Dilma governará por si. 
D. Dilma parece ser uma peça bem colocada na hierarquia.  Peças bem colocadas na hierarquia são pessoas que sabem quem manda nelas e sabem em quem elas mandam, e não têm nenhuma dificuldade em lidar com isso; sabem obedecer e são exigentes no mandar. Essas pessoas, quando chegam ao poder supremo, são surpreendentes. Ninguém imagina que elas tenham opinião própria, mas têm.  Apenas, a reservam para o momento adequado, lógica, ética e politicamente.
O século 20 conheceu uma figura assim, luminosa, por sinal. Refiro-me a D. Angelo Giuseppe Cardeal Roncalli.
Exímio diplomata, sempre foi um cumpridor de ordens, fiel e competente.  Quando o papa Pio 12 morreu, os cardeais, divididos entre conservadores e liberais, não se sentiam aptos a impor a vitória de um partido sobre o  outro. (Que heresia! Afinal o conclave é só um veículo do Espírito Santo!) Então, elegeram um "papa de transição": um homem velho (que, previsivelmente, duraria pouco), inteligente, competente em suas funções, mas pouco mais que um burocrata, só para manter o dia a dia da Igreja até que a correlação de forças se definisse melhor.  Esse homem foi o Cardeal Roncalli, que reinou gloriosamente como papa João 23 e provocou um verdadeiro terremoto ao convocar o Concílio Vaticano 2°, destinado ao aggiornamento da Igreja Católica Apostólica Romana.
O Cardeal Roncalli também não era um "poste".  Era um homem notável que sabia bem o que pensava, mas tinha disciplina e prezava a hierarquia.  Enquanto teve superiores, foi fiel a a eles.  Quando foi alçado ao poder máximo, foi fiel a seu descortino e a sua consciência.
Creio que D. Dilma surpreenderá Lula tal e qual ele surpreendeu seus eleitores com a  continuidade da política econômica do governo de Fernando Henrique Cardoso.  Em ambos os casos, talvez os surpresos não fiquem felizes.  Espero em Deus que o Brasil fique.

sábado, 4 de setembro de 2010

Existe uma Receita para ganhar eleições?

O escândalo eleitoral da última semana de agosto de 2010 foi a quebra ilegal do sigilo fiscal da filha do candidato José Serra.  O número de vezes em que a preposição "de" aparece nessa frase rememora a frequência com que os escândalos se têm repetido na República. Agora, tocam na Receita Federal do Brasil.
Depois do mensalão, dos "aloprados", do dossiê que não era dossiê, descobre-se que a Receita não é um cofre forte o suficiente para guardar os meus, os teus, os nossos sigilos fiscais contra a curiosidade de olhares ingênuos ou mal intencionados, não importa, desvinculados, porém, do zelo pelo bem do erário e desamparados da autorização indispensável, administrativa ou judicial -- e isso importa muito.
A proeza não é propriamente inovadora.  Em tempos em que o Partido dos Trabalhadores não estava no poder, ele já se beneficiava de trabalhadores do serviço público ou de bancos privados que, por puro interesse cívico, permitiam-se deixar saber informações confidenciais a que tinham acesso por dever de ofício, no intuito evidente de mostrar o quanto eram corruptos os mortais comuns que não integravam a confraria das vestais.
É claro que não atribuo tais desvios da obrigação funcional ao Partido e nem vislumbro nelas maquinação mefistofélica com vistas a acelerar a alternância no poder.  Acredito que o que acontecia era a crença de que a verdade deveria vir a lume a qualquer custo, mesmo atropelando as leis, que devem ter sido feitas para proteger os desonestos encastelados nas estruturas tradicionais. Essas exibições do quanto era hipócrita o decoro político serviriam para sublinhar a diferença -- a grande diferença  -- entre partidos políticos comuns, todos venais, e a comunidade dos fieis depositários da moral pública, cavaleiros da ética, santos guerreiros contra o dragão da maldade.
O tempo passa e a Lusitânia roda -- dizia um anúncio do meu tempo de garoto, acho que de uma transportadora, não me lembro bem.  Pois a Lusitânia rodou, rodou, e eis que a pedra virou vidraça.
Isto aconteceu não tanto porque a lenda dos incorruptíveis fosse acreditada pela maioria, mas porque o governo de Fernando Henrique Cardoso não conseguiu sustentar a insustentável prosperidade que todos desejavam, menos pelos seus erros -- e eles existiram -- do que pela conjuntura, nacional e internacional. Além disso -- e não menos importante -- pelas artes do senhor Duda Mendonça, um gênio de sua profissão, capaz de vender Paulo Maluf como um coração cor de rosa e inventar o Lulinha paz e amor, bem vestido, com aparência cuidada, ameno e até engraçado. Ah... e capaz de chorar em público sem perder a rusticidade, pois sobretudo aquele brasileiro bronco que afirma que "homem não chora" fica definitivamente cativado por um homem que chora sem perder a rusticidade.
Quem chegou ao poder foi Lula, não o PT. Uma classe média ensandecida -- não a de hoje, a de 2002 -- acreditou que Lula, presidente, iria mudar a malfadada política econômica que tinha por guardião Pedro Malan, ministro da Fazenda de FHC.
Aqui faço parênteses para dizer que todo brasileiro deveria ter em casa o retrato de Pedro Malan, e homenageá-lo todos os dias, como os primitivos cultuavam seus ancestrais. É que Malan é o ancestral de toda essa solidez econômica, de toda essa novel prosperidade, não tanto pelo que fez como ministro, mas pelo trabalho hercúleo e competente que desempenhou como um "obscuro" embaixador, renegociando a dívida externa brasileira. Foi isto que forneceu ao plano Real  base sólida para implantar-se.
Mas voltando à classe média, o sinal de sua loucura não foi ter votado em Lula pelas qualidades que Lula tem, mas  ter votado em Lula pela crença em que ele iria romper com a política econômica do governo anterior.
Ora, é sabido que os poderes de um governante sensato em determinados assuntos, como a política macroeconômica, são débeis em relação à pressão irresistível de uma história que não é apenas nacional. Lula não mudou a política econômica, a não ser para torná-la mais estrita. Inteligente como é, não poderia tê-la mudado e, porque não a mudou, colhe hoje os benefícios frutificados a partir da semente que o ancestral Malan semeou e cultivou, primeiro como embaixador e, depois, como ministro, a desepeito de ter sido enxovalhado o trabalho do governo anterior como "herança maldita".
Mas, Lula no poder, era preciso enfrentar o problema da "governabilidade". (Fico devendo uma postagem para contar a história da "governabilidade".) No caso, a governabilidade exigia maioria no parlamento, o que seu partido não tinha. Então era preciso o mensalão e o loteamento do Estado.
É evidente que não atribuirei a Lula ou ao PT a invenção do loteamento do Estado. A questão aqui  é a intensidade e a desenvoltura com que isso foi feito, tornando corriqueiro o aparelhamento do Estado pelo partido do presidente da República. Além de merecer reparos do ponto de vista da teoria democrática, isto se expõe a objeções ainda maiores, porque pode ter ocorrido que, faltando as pessoas de nível adequado, este tenha sido sacrificado às necessidades quantitativas do apetite partidário.
É aí que entra a Receita. As denúncias de aparelhamento da Receita não são de hoje. A serem verdadeiras, caracteriza-se um desconhecimento do que são órgãos do Estado e o que são órgãos do governo, ou, o que é pior, conhecimento disso, mas desprezo pelas implicações éticas e jurídicas produzidas pela confusão dessas duas coisas.
O aparelhamento de órgãos responsáveis por atividades de Estado é um risco grave que deve ser evitado e denunciado, se ocorrer. Não fico tranquilo quanto  a esse aspecto do governo Lula, porque não espero que o Presidente conheça adequadamente os rudimentos de ciência política e de teoria do Estado que seriam úteis a este respeito. Por desconhecimento, pode levar além do tolerável o uso da máquina administrativa para promover seus interesses políticos, inclusive a eleição da sucessora que deseja para si.
Se fosse provado, além de qualquer dúvida, que a Receita Federal converteu-se em comitê eleitoral por ordem do presidente da República, isto seria tão sério que não bastaria cassar-se o registro da candidata beneficiada a sua revelia. Mas enquanto não se provar isso... Enquanto fatos da natureza do que comoveu o noticiário político da semana puderem ser atribuídos a mais um franco-atirador "aloprado", é preciso ter bom senso. O eleitor, em geral desinformado das minúcias da legislação, tem a impressão de que o time que está perdendo em campo quer ganhar no "tapetão". E isso é muito antipático.
De eleitor o presidente Lula entende muito bem. Por isso, disse aos repórteres televisivos (cito de memória): "A gente ganha uma eleição convencendo o eleitor a votar na gente, não querendo afastar o outro candidato". 
Falou e disse! Concordo com ele.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Não quero ser um filho da Dilma

Antes de mais nada, meu profundo respeito a D. Dilma Rousseff, de quem dizem maravilhas como administradora.
Houve, neste país, um mensalão, que alguns pensam que não existiu, mas cujo esgoto corre nas valas processuais do Supremo Tribunal Federal, pelas artes do Ministério Público e as bênçãos cívico-jurídicas do ministro Joaquim Barbosa. Os fatos que deram origem ao neologismo – embora, infelizmente, a prática não fosse tão nova assim – defenestraram do governo o todo-poderoso ministro José Dirceu, então chefe da Casa Civil.
Alguns “espíritos amargos e estreitamente positivos” (para usar a ironia ferina de Eça de Queiroz, em A Correspondência de Fradique Mendes) perguntaram-se então: quem vai, agora, administrar o Brasil? O comentário maldoso apontava a pretensa incapacidade gerencial do presidente Lula, cujo talento para o palanque não deixaria margem, nesta versão, a que ele fosse o verdadeiro governante do dia a dia.
A maledicência de ontem tonou-se, afinal, a verdade de hoje, pela palavra insuspeita do próprio presidente, a nos afirmar, quase todos os dias (e por isso sofre multas da Justiça Eleitoral), que D. Dilma Rousseff foi, é e será a “mãe” de todas as coisas boas que se fizeram no País, durante sua estada na Casa Civil, sucedendo a José Dirceu.
Referida por Lula como a “mãe do PAC”, sigla para programa de aceleração do crescimento, cuja eventual lentidão foi, em tempos, motivo de irritação presidencial com o Tribunal de Contas da União, D. Dilma declarou, em recente entrevista, como candidata em campanha para a presidência, que governaria como a “mãe de todos os brasileiros”. Cito de memória; pode ser que houvesse uma palavra a mais ou a menos, mas o sentido era esse e a mágica palavra “mãe” certamente foi mencionada.
Quando comecei a tomar consciência da vida política (e isso foi desde a infância), descobri que meus pais eram “getulistas”. Na época, testemunhei inflamadas disputas entre “getulistas” e “lacerdistas”, coisa como debates entre vascaínos e flamenguistas, no Rio de Janeiro, ou torcedores do Bahia e do Vitória, em Salvador. Eu mesmo, confesso que senti uma certa alegria selvagem, oriunda da parte reptiliana de meu cérebro, ao saber, por quem se dizia testemunha ocular dos fatos, que o Sr. Carlos Lacerda, abrigado na Embaixada Americana, no centro do Rio de Janeiro, escondera-se na caixa d’água do prédio, apavorado com a possibilidade de ser vítima da indignação do povo que passava em frente carregando, literalmente nos braços, o ataúde de Getúlio recém-morto, levado do Palácio do Catete para o aeroporto, de onde seria trasladado para o Sul.
Meu espírito crítico, porém, despertado por volta dos 12 anos de idade, logo percebeu o absurdo dos maniqueísmos. Descobri que o mundo não se faz do contraste de branco e preto, mas de uma infinidade de tons de cinza que, conforme a iluminação e o ângulo por que são vistos, aparecem com a brancura ou a pretura que os ingênuos lhes atribuem. Foi por isso que perdi a oportunidade única de, na adolescência, acreditar em “causas” ou em partidos, de ter paixão política e tornar-me um rebelde pronto tanto para salvar o mundo quanto para desprezá-lo como se fosse um monte de abominações das quais se salvariam apenas os meus sonhos. Como Espinosa, em vez de ridicularizar ou lamentar as ações humanas, tornei-me obcecado por compreendê-las.
Mas voltemos à maternidade abrangente de D. Dilma.
Consta que Getúlio Vargas, que foi chamado “pai dos pobres”, é um dos modelos inspiradores do presidente Lula. Quando adquiri um mínimo de cultura política, entendi que Getúlio Vargas foi elemento importante no processo de modernização do Brasil. Na linguagem usual, “fez” coisas extraordinárias, que merecem admiração. Como todos os seres humanos, também teve defeitos e, pela posição eminente que assumiu, pode ser associado a acontecimentos lastimáveis, cuja repercussão a história reconstruída ex post fato coloca nas dimensões cabíveis.
A questão, porém, não é analisar o Sr. Getúlio Vargas como a personalidade fascinante que foi nem como o governante polêmico e prolífico que também foi. Trata-se da mitologia do “pai dos pobres” ou do Pai da Pátria, cuja existência e sobrevivência estão entre as causas de muitas mazelas da nossa trôpega caminhada BRIC*.
É assustador que o povo brasileiro tenha sido e ainda seja sujeito a acreditar em um messias político. É absurdo que as pessoas suponham que a vida do País (e sua própria vida) dependam da virtude miraculosa de alguém que seja “o cara”. É trágico que ainda se imagine que os governantes sejam nossos superiores benevolentes que nos “dão” alguma coisa ou “fazem por nós”, em vez de os considerarmos como os empregados – ilustrem que sejam – que contratamos para gerir nossos interesses coletivos.
Quero um presidente ou uma presidenta que seja honestamente antipático(a), mas competente. Não quero pai nem mãe no Palácio do Planalto, mas alguém escolhido pela maioria dos eleitores para gerir interesses de todos nós, de modo limpo e transparente, atribuindo-se sua verdadeira responsabilidade – boa ou má – sem exclamar diante de cada malfeito perpetrado em seu quintal (ou em um gabinete dos arredores): Ah, eu não sabia...
Minha mãe – que Deus a tenha – viveu até os 94 anos e teria completado o centenário em janeiro de 2010. Devo a seu senso de responsabilidade a base de minha formação como pessoa e a seu temperamento autoritário o desafio da relação afetiva e conflituosa que me empurrou para a busca do equilíbrio entre obediência e resistência – coisa que nem sempre foi agradável, mas pela qual sou, hoje, infinitamente grato. Não preciso de outra, e nem quero. Especialmente quando se trata de um estereótipo para uso populista, tendente a perpetuar uma servidão emotiva e acrítica que incapacita o desenvolvimento da cultura política de que todo povo precisa para ser realmente livre.
É por isso que não quero ser um filho da Dilma.

*Iniciais de Brasil, Índia, China e Rússia, os países emergentes que aspiram à condição de potências mundiais.