Não sei se a expressão ainda está em uso, mas, antigamente, “peru”
era o indivíduo que, nos jogos carteados (e, por extensão, em toda e qualquer outra
atividade), punha-se de parte, olhando os jogadores sentados à mesa em disposição circular: a roda do jogo. Desse modo, o peru poderia ver a carta de algum ou alguns dos
participantes, o que o colocaria em condições de, por meios habilidosos,
transmitir essa informação a adversários. Estes, assim, ganhavam significativa e desonesta vantagem. Tal acepção do termo "peru" estendeu-se com o verbo “peruar”,
de uso coloquial, significando intrometer-se; forçar participação, em geral
indesejada.
O peru dos jogos é um espião, e é sempre difícil determinar
até que ponto espiões só espiam ou se interferem de outro modo nas situações de
que participam. Nos movimentos políticos, frequentemente há perus que
interferem, e interferem poderosamente, com tanto mais credibilidade quanto se
revelam os mais apaixonados cultores da causa defendia.
Em 1964, no Brasil, a tensão político-social crescia
cotidianamente. O povo alheio aos entrechoques políticos sofria com greves
cotidianas de tudo quanto era serviço e assustava-se com a retórica retumbante
dos próceres da esquerda defendendo as “reformas de base”, que o homem comum
não sabia exatamente em que iriam afetar sua vida. Sabia, sim, porque isso lhe era
dito pelos mais respeitáveis formadores de opinião, que estava exposto ao “perigo
comunista”, cujo objetivo seria proibir-lhe a adoração divina e desfazer-lhe a
família, além de submetê-lo a um estado policial opressor. Esta última ameaça
era bem crível, porque assim era na União Soviética e nos seus Estados-satélites
do leste europeu (embora o fosse, também, na Espanha de Franco, no Portugal de
Salazar e, de modo geral, em todo e qualquer regime ditatorial mantido pela
força militar). Então, o povo das grandes cidades pedia a Deus que o livrasse
do perigo comunista e, em São Paulo, chegou a produzir-se a Marcha da Família,
com Deus, pela Liberdade, que reuniu cerca de meio milhão de pessoas, em março
de 1964.
Se Deus resolvesse atender ao pedido desse povo, teria de
ser por meio dos militares.
A estrutura das forças armadas brasileiras em 1964 era muito
diferente da atual. Hoje um oficial-general não pode ficar mais de quatro
anos no mesmo posto nem mais de 12 no generalato. No passado, havia generais bem mais antigos, que
se tinham tornado líderes militares e líderes políticos dentro da força armada.
Exatamente por saber como isso
funcionava, o marechal Umberto de Alencar Castelo Branco, chegando ao poder,
alterou a lei de promoções dos oficiais-generais no sentido de produzir-se uma
força mais profissional e menos politizada.
Havia, portanto, também, em 1964, inquietação
político-militar, com genreais de direita e de esquerda, além daqueles que se
aferravam aos ditames fundamentais de sua carreira: hierarquia e disciplina.
Foi assim que o golpe de 64 se deflagrou. Um certo cabo
Anselmo (José Anselmo dos Santos), praça da Marinha de Guerra, começou um
movimento para-sindical entre cabos e sargentos da força naval. Esse movimento
forçou uma ultrapassagem de limites que punha em risco a estabilidade
hierárquica e disciplinar da força, com as bênção de alguns oficiais, como o vice-almirante
Cândido da Costa Aragão, comandante do Corpo de Fuzileiros Navais. Quando se vislumbrou o apoio do presidente da
República a essas atividades, o governo passou a ser visto como risco para a
estabilidade militar e o golpe amadureceu. Anos mais tarde, divulgou-se que o
aguerrido cabo Anselmo fora agente da CIA. Na verdade, preso depois do golpe de
64, foi expulso da Marinha, mas “fugiu” e refugiou-se me Cuba, tendo-se
revelado, posteriormente, destacado colaborador do sistema estatal brasileiro
de repressão aos movimentos de guerrilha que se desenvolveram nos anos de 1970.
É preciso que se diga, para benefício das mentes simples,
que o golpe de 64 não foi comandado desde Washington. Embora atendesse aos
interesses geopolíticos dos Estados Unidos e tivesse a plena simpatia do
governo americano, simpatia que poderia ter-se convertido em apoio inclusive
militar, conforme assegurava o embaixador Lincoln Gordon, esse apoio não foi
aceito nem usado pelos conspiradores. Eles tinham, interna corporis, suficientes razões e suficiente indignação para
por cobro a uma situação que, de seu ponto de vista, era calamitosa.
Não posso afirmar, por não saber de fonte segura, se os hesitantes
líderes do golpe de 64 sabiam, à época, da vinculação externa de cabo Anselmo. Acredito
que não sabiam. Mas tenho certeza de que a agitação naval os assustava mais que
as reformas de base. Afinal, naquela
época, generais não eram usualmente latifundiários nem investidores no mercado
de capitais. Mas as estrepolias do cabo Anselmo e seus colegas mexiam com algo
que lhes interessava bem de perto: o comando e controle de sua força.
Então, quando, em movimento aparentemente atabalhoado, um
general de hierarquia inferior, Olímpio Mourão Filho, botou a tropa na rua, o
jeito da cúpula militar foi ir junto e derrubar o governo. É verdade que Mourão
Filho fora alegadamente participante de outra jogada política que dera pretexto
ao golpe de Getúlio Vargas em 1937. Ele foi acusado de ser o autor ou um dos
autores do Plano Cohen, uma contrafação apresentada como indício veemente de um
iminente golpe comunista, e Vargas, diante das evidências e na defesa da ordem e proteção dos cidadãos,
proclamou o Estado Novo, outorgando uma Carta que lhe dava poderes ditatoriais.
Curiosamente, o autor intelectual dessa Carta, o jurista Francisco Campos, foi
o mesmo que, em 1964, orientou a redação do Ato Institucional (sem número, mas
o primeiro de sua espécie) pelo qual o movimento militar de 1964 se configurou
no plano jurídico-político.
Recentemente, o ator Carlos Vereza divulgou um vídeo em que
alerta para sinais de manipulação do movimento reivindicatório por elementos
ligados ao governo, que seria, pelos motivos que expõe, beneficiado com o clima
que se está instaurando. Eu mesmo tenho visto algumas postagens na internet de caráter
claramente provocador, dando ao que acontece hoje um caráter beligerante que
não se situa no plano da luta cidadã, para situar-se no da rebelião violenta.
Hoje, em Salvador, que parecia um primor de civilidade nas passeatas, a violência
eclodiu.
Tudo na vida tem duas faces – é o lugar comum da metáfora da
moeda. Se um movimento tem uma liderança clara e firme, tem um objetivo,
defende interesses bem determinados, essa liderança pode incluir ou excluir de
sua tática ações que estejam de acordo ou em desacordo com os objetivos colimados,
estimulando ou cerceando os atores que as praticariam. Por outro lado, interesses assim
configurados são excludentes, na medida em que não correspondem a um desejo generalizado
da sociedade que, ao contrário do que imaginam os ideólogos, não anseia, de
modo uniforme, pela especial receita de felicidade política que eles, ideólogos, preconizam.
Se, por outro lado, o movimento é aberto e negativamente
reivindicatório (no sentido esclarecido em outra postagem) não há como ser
escoimado de participações indesejáveis (e não são indesejáveis porque assim
foram classificados em uma censura ideológica, mas por falta de autenticidade,
por compromisso fraudulento com algo que não é a reivindicação em si). Só esse, porém, é o tipo de movimento que pode empolgar toda a sociedade e que, a meu juízo,
pode estar acontecendo agora.
De minha parte, estou velho, aposentado e privado de fontes
especializadas de informação, mas os acontecimentos que vejo me trazem à lembrança a frase com que, outrora, os
participantes dos jogos de cartas eram alertados por terceiros contra a
possibilidade de estarem sendo enganados mediante prática fraudulenta a serviço
do adversário: tem peru na roda!
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