Dia
17 de junho, coloquei na tribuna de todos nós, o Facebook, uma foto da
concentração de manifestantes diante do Shopping Iguatemi, em Salvador, com a
seguinte mensagem: “Eu não estou ali porque sou
um velho de pernas trôpegas. Meus netos estão, e ME REPRESENTAM”. A postagem
suscitou vários comentários. Em resposta
a um deles, que procurava comparar o que acontece hoje com a chamada “passeata
dos cem mil”, no Rio de Janeiro, em 1968, afirmei que o que hoje se vê é bem mais
importante, e escrevi: “Em 68 a opção
era entre esquerda e direita, em um mundo bipartido entre autoritarismos. A
opção de hoje é entre um regime enganador e falido e um início de expressão da
cidadania, em um mundo que se abre. É MUITO diferente!”
Reconheço
a natureza polêmica de afirmativas desse tipo. Portanto, creio adequado
desenvolver um pouco mais minha asserção. Começo pela metáfora do sapoti.
O
sapoti é uma das frutas mais saborosas que o clima tropical produz. Entretanto,
para ser apreciado na plenitude de seu delicado sabor tem de ser colhido
maduro, quando cai espontaneamente do pé. Colhido antes, é duro e insuportável
pela quantidade de tanino, popularmente chamado “cica”. Amadurecido “à força”,
pode ficar mais adocicado, mas não se compara ao fruto madurado naturalmente no
seu devido tempo. O problema é que as aves e os morcegos atacam o fruto maduro,
de modo que é raro que se encontre um sapoti caído que já não esteja rompido e
precocemente apodrecido.
Assim
são as manifestações do povo.
De
lenta maturação, servem, ainda verdes, à manipulação por interesses muito particulares,
que nada têm a ver com a autenticidade imaginada pelos primeiros teóricos da
democracia representativa – aquilo que, no século XX, Habermas chamaria de
interesses universalizáveis.
Por
outro lado, as ações político-partidárias facciosas, as pressões dos formadores
de opinião, a orquestração de interesses poderosos também podem fazer com que,
ao amadurecer, a opinião popular se torne precocemente apodrecida em um
comportamento de massa particularizado e irrelevante.
Minha
(polêmica) tese é a de que estamos diante de um sapoti maduro, isto é, de uma
manifestação autêntica e poderosa e, antes de ser acusado de ingenuidade
inadmissível, gostaria de explicar detidamente meu ponto de vista.
Aparentemente,
tudo se inicia com a elevação do preço das passagens de ônibus na cidade de São
Paulo em 20 centavos. Logo, todo o país se incendeia com manifestantes
questionando desde o custo do transporte público até a corrupção generalizada.
Cria-se, então, um movimento articulado, mas não coordenado, que quer muitas
coisas e parece nada querer de modo específico. Aliás, a falta de um objetivo
claro foi uma das críticas feitas e esse movimento.
Creio que o movimento tem a força do que costumo
chamar reivindicação negativa. Este
tipo de reivindicação não se faz para conseguir algo certo e determinado, mas
representa a indicação de que um presente estado de coisas é intolerável. Uma
reivindicação negativa não pode ser apaziguada pela concessão dos anéis para
que se preservem os dedos; mais cedo ou mais tarde, mudanças substanciais
precisarão ocorrer, porque a existência de reivindicações negativas indica, precisamente,
o esgotamento de um modo de convivência que não pode ser preservado apenas com
pequenos reparos.
Se um movimento é feito para reivindicar mais verbas
para a saúde ou educação, é uma reivindicação positiva a favor de algo inexistente. Se for feito um movimento para
derrubar o governo, tratar-se-á de uma reivindicação positiva contra algo existente. Na reivindicação
negativa, não: o que se veicula é que o estado de coisas presentes é
intolerável, é que como está não pode continuar, mesmo que não se saiba precisamente
o que deve vir depois, ou – o que é mais frequente – que diferentes grupos e
participantes tenham receitas de futuro diversas.
A força dos movimentos de reivindicação negativa
deriva precisamente disso: eles não buscam algo especifico, buscam o fim de um
estado de coisas, deixando em aberto o futuro. O que pode vir é desdobramento
do movimento reivindicatório, mas não sua consequência previsível, já que não
opera sob o controle da força de um grupo que o tenha organizado – porque tal
grupo inexiste. Os grupos organizadores,
que podem estar inseridos no movimento, fazem reivindicações positivas, sejam
elas a favor de fatos ou coisas inexistentes, sejam contrárias a fatos ou
coisas existentes.
É difícil perceber uma reivindicação negativa, mesmo
entre os que a fazem. Por isso, ela ou aparece como pluralidade de
reivindicações que parecem erráticas e fracamente correlacionadas ou se afigura
reivindicação por algo amplo e genérico que, sem operacionalização, nada
significa.
Na verdade, o povo quer respeito. É difícil traduzir
“respeito” em uma lista finita de providências concretas. Trata-se de uma
atitude diferente no trato da coisa pública. Trata-se de seriedade e
razoabilidade nas ações.
Esse movimento não é partidário, mas é profundamente
político. O povo não quer derrubar o governo, mas quer derrubar o desgoverno. O
povo não quer extinguir a corrupção de um partido, mas quer extinguir a
corrupção, não em certos e determinados casos, mas como atitude rotineira no desenrolar
das atividades de Estado. O povo não quer verbas específicas, mas quer que o
dinheiro público seja empregado com critério.
Esse movimento significa, sobretudo, a recusa de
confiança do povo nos grupos políticos que empolgam o poder. Ninguém ficou
imune. Não há partido ou personalidade que mereça , hoje, um voto de confiança
tal que possa governar sem transparência e sem prestar minuciosas contas do que
esteja fazendo. O povo descobriu que os governantes são nossos empregados, que
nos pediram emprego pela televisão na época das eleições e, portanto, não podem
ser deixados a si próprios como se estivessem gerindo coisa sua. O povo precisa vigiar o Estado, porque, como
diz o ditado interiorano, “é o olho do dono que engorda o gado”.
D. Dilma, coitada, entra nisso como Pilatos no
Credo. Estava no lugar certo na hora errada. As vaias que recebeu não são tão
relevantes assim. Não sei em Brasília, mas no Maracanã, no Rio de Janeiro, a
única personalidade não ligada ao futebol que algum dia foi aplaudida em vez de
vaiada foi o general Emílio Garrastazu Médici. Era ditador, mas era popular.
Que fazer? Getúlio Vargas também foi ditador e também foi popular. O povo, na
verdade, jamais se importou muito com democracia ou ditadura. O sapoti estava
verde. Agora é diferente. O sapoti amadureceu. A Constituição Cidadã do doutor
Ulysses ajudou a fazer cidadãos. Essa é a grande novidade.
Ser cidadão não é só ir às ruas e reivindicar como
quem sabe que pode exigir. A cidadania ainda está sendo descoberta. Quando for
plenamente entendida, terá acontecido a primeira revolução verdadeira na história
do Brasil.
Na África, tudo começou por um tapa na cara desferido contra o camelô
tunisino Mohamed Bouazizi. No Brasil
pode ter começado por vinte centavos.
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