Em 1968, uma onda de protestos libertários
espalhou-se pela Europa, alegadamente deflagrada pela punição, na França, a um
universitário que fora encontrado em “visita íntima” no dormitório das meninas
(ou vice-versa, estou citando de memória). O mote da revolta era: “É proibido
proibir.”
Quando os ventos europeus de 1968 chegaram ao
Brasil, a reivindicação negativa de Danny le
Rouge (Daniel Marc Cohn-Bendit, de nacionalidade alemã, mas estudante na
França) assumiu a forma de uma reivindicação positiva contra algo: a Ditadura. Sim,
havia um governo autoritário cuja margem irrestrita de poder o caracterizava
como ditatorial. Entretanto, a letra maiúscula que uso não representa qualquer
homenagem minha a essa forma de regime. Uso a letra maiúscula para caracterizar
Ditadura como nome próprio, isto é, para referir-me àquela ditadura.
De minha parte, considero a democracia mais
conveniente que qualquer ditadura, até do que aquela que me tivesse como
ditador. Não era o caso em 1968. Nem
todos os grupos que se opunham à Ditadura tinham, como alternativa ideal, a
democracia. Na verdade, muitos deles ficariam felizes se a Ditadura fosse
substituída por outra: a ditadura do proletariado que, como Lênin explicou,
enquanto este não tivesse consciência de classe, teria de ser exercitada pela
vanguarda do proletariado, o Partido, no qual pontificava o Comitê Central sob
a iluminada liderança do carismático e infalível Secretário Geral. Fora assim
que Iossif
Vissarionovitch Djugashvili, geralmente conhecido como Stalin, tornara-se ditador da União Soviética e, após a segunda guerra mundial, a conduzira na
chamada Guerra Fria, o confronto político-ideológico com o “bloco
ocidental”, liderado pelos Estados Unidos.
A Guerra Fria foi um confronto de poder entre duas potências hegemônicas,
disputando o mundo globalizado que se anunciava ainda discretamente. Como todo
confronto de poder, cada lado escudava-se em uma capa de respeitabilidade
ética, defendendo valores que seduziriam seus possíveis súditos: do lado
americano, a liberdade; do lado soviético, a revolução proletária mundial.
No Brasil a Guerra Fria produziu o golpe militar de 1964, que
possibilitou a Ditadura. Esta se acabaria em 1985, pelo mesmo mecanismo que a
havia produzido: a Guerra Fria, neste caso em processo de deterioração. Formalmente
extinta em 1991, pelo desmantelamento da União Soviética, a Guerra Fria teve, como ícone
mais marcante de seu fim, a derrubada do Muro de Berlim, em 1989. O Muro de
Berlim havia sido uma parede de concreto construída e, com o tempo, reforçada
entre os lados leste (socialista) e oeste (capitalista) da cidade de Berlim. Desse
modo, o muro representava fisicamente a fronteira nítida entre o domínio
político da esquerda e o domínio político da direita, nos sentidos em que esses
termos eram usados em meados do século XX. A Guerra Fria era, portanto, um
confronto entre esquerda e direita.
O golpe militar de 1964 representou uma “derrota” da esquerda no plano
bélico. Entretanto, teve e tem entre nós razoável sucesso a estratégia preconizada
por Antonio Gramsci (genial pensador e um dos fundadores e líderes do Partido
Comunista Italiano) para reverter a hegemonia cultural das classes dominantes.
A ideia de Gramsci, em grandes linhas, é que, pelo controle dos meios de
comunicação, das organizações religiosas e, sobretudo, do magistério, é
possível reformar a mentalidade das gerações vindouras, de modo a criar, na
superestrutura social, as condições que a revolução proletária produziria, se
fosse viabilizada.
Feliz ou infelizmente, não vem ao caso, no Brasil nada é levado tão a
sério assim. Desse modo, o relativo êxito da hegemonia cultural da esquerda
traduziu-se pela demonização da direita, mais que por efetivas alterações no
pensamento real da sociedade. Ocorreu que, ao mesmo tempo que a esquerda
passava a ser clandestina, por temor da perseguição estatal, a direita também
passava ser clandestina, por “vergonha cultural”. Ninguém mais no Brasil era de
direita. “Ser de direita” virara um
palavrão, abundantemente distribuído a adversários políticos de qualquer matiz.
Então, passou a ser comum ver pessoas verbalizarem o discurso da esquerda,
porque é “de bom tom”, e pensarem e agirem de forma diferente, sem mesmo
perceberem a contradição, porque o próprio significado do discurso só ficara corretamente inteligível a alguns ideólogos conscientes.
Como se sabe, o verdadeiro democrata é o oposto do “dono da verdade”, ou
seja, é o oposto dos ideólogos de extremismos, tanto de direita quanto de
esquerda. Não é, portanto, surpreendente que a contraposição à Ditadura tenha
sido liderada, no seu aspecto mais visível, por opositores que, se pudessem,
ficariam satisfeitos com outra ditadura: a sua própria ou de seus amigos.
Criou-se a lenda eleitoral de que a esquerda derrotara a Ditadura e
conquistara a democracia. Não é verdade, mas, dizem os italianos, si non è vero è ben trovato, que se
pode traduzir livremente como “é uma bela história, mesmo que não seja verdadeira”.
Em política, como se sabe, a verdade é, em grande parte, irrelevante; os
efeitos decorrem principalmente do que se imagina que seja e não do que é.
A transição brasileira para a democracia foi consentida. Um parecer do ministro
Neri da Silveira transformado em Resolução do Superior Tribunal Eleitoral
declarou a inaplicabilidade da fidelidade partidária no Colégio Eleitoral,
possibilitando juridicamente a eleição de Tancredo Neves. Isto certamente foi
facilitado pelo fato de ter o notório senhor Paulo Maluf atropelado o último
general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo, fazendo-se candidato
pela Arena contra a vontade deste.
Tancredo Neves, um homem de centro, fora apoiado pela esquerda. Depois do
breve interregno de Collor/P.C. Farias, vêm Fernando Henrique, considerado um
homem de esquerda, e a quintessência da esquerda tolerada pelo regime militar:
Luís Inácio Lula da Silva. O partido de Fernando Henrique, o PSDB, estruturara-se
a partir de intelectuais de esquerda que, antes, formavam os “puros” do PMDB, qualificativo
difícil de ser explicado e entendido, tratando-se de política partidária. O
partido de Lula, o PT, tinha, em seus estatutos originais, compromisso com a revolução
socialista, depois abrandado em tempos de democracia. Era, portanto, a esquerda
no poder.
É verdade que o PT no poder não é o mesmo PT da oposição. Disseram-no,
mais por atos que por palavras, o então presidente Lula e o então todo-poderoso
ministro Dirceu quando defenestraram, por mal ou por bem, os petistas coerentes
que saíram para fundar o PSOL. Entretanto, o governo que aí está, chefiado por
D. Dilma, invenção política de Lula de quem fora um alter ego tecnicamente competente na administração do governo, é a
esquerda “clássica” em toda sua glória: os derrotados de ontem, hoje
vitoriosos, graças à democracia.
Chegamos, assim, às manifestações de junho de 2013. Não se trata de um
movimento contra o governo e a favor da oposição. Não se trata de um protesto
da esquerda contra a direita. A direita, no Brasil, com cara e identidade de
direita, já havia desaparecido há muito tempo. Restava uma esquerda “clássica”,
parada no tempo, ainda "lutando contra a Ditadura” e que, como a Carolina de Chico
Buarque, não viu o tempo passar na janela.
Essa esquerda “clássica” acaba de ser enterrada pelos jovens na rua, que
representam os interesses que ela, a esquerda, deveria estar defendendo, só que
eles, os jovens, não querem, para isso, uma ditadura. Tal qual os que
derrubaram o muro de Berlim e os regimes ditatoriais do leste europeu, com
protestos e passeatas, eles não querem algo especifico, mas, apenas, denunciam
que “isso que ai está” não pode continuar.
Este governo e seu principal partido não representam mais o santo
guerreiro da esquerda personalizada contra o dragão da maldade da direita mais
ou menos identificada. Acaba-se, desse modo, a sacralização dos que se arrogavam santidade política em virtude de terem “derrubado” a Ditadura. Acaba-se a blindagem
de um grupo político que, alegadamente, é – e só ele o é – o defensor do
povo e o único adversário político de nebulosas “elites” (que certamente
existem, mas jamais são precisamente identificadas; como fantasma, o inimigo é
mais assustador).
É o Muro de Berlim caindo no Brasil. A sociedade chegou a seu limite de
tolerância com "isso que aí está", e não há salvadores da Pátria previamente ungidos a quem recorrer.
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