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terça-feira, 18 de junho de 2013

O Muro de Berlim está caindo... no Brasil

Em 1968, uma onda de protestos libertários espalhou-se pela Europa, alegadamente deflagrada pela punição, na França, a um universitário que fora encontrado em “visita íntima” no dormitório das meninas (ou vice-versa, estou citando de memória). O mote da revolta era: “É proibido proibir.”
Quando os ventos europeus de 1968 chegaram ao Brasil, a reivindicação negativa de Danny le Rouge (Daniel Marc Cohn-Bendit, de nacionalidade alemã, mas estudante na França) assumiu a forma de uma reivindicação positiva contra algo: a Ditadura. Sim, havia um governo autoritário cuja margem irrestrita de poder o caracterizava como ditatorial. Entretanto, a letra maiúscula que uso não representa qualquer homenagem minha a essa forma de regime. Uso a letra maiúscula para caracterizar Ditadura como nome próprio, isto é, para referir-me àquela ditadura.
De minha parte, considero a democracia mais conveniente que qualquer ditadura, até do que aquela que me tivesse como ditador.  Não era o caso em 1968. Nem todos os grupos que se opunham à Ditadura tinham, como alternativa ideal, a democracia. Na verdade, muitos deles ficariam felizes se a Ditadura fosse substituída por outra: a ditadura do proletariado que, como Lênin explicou, enquanto este não tivesse consciência de classe, teria de ser exercitada pela vanguarda do proletariado, o Partido, no qual pontificava o Comitê Central sob a iluminada liderança do carismático e infalível Secretário Geral. Fora assim que  Iossif Vissarionovitch Djugashvili, geralmente conhecido como Stalin, tornara-se ditador da União Soviética e, após a segunda guerra mundial, a conduzira na chamada Guerra Fria, o confronto político-ideológico com o  “bloco ocidental”, liderado pelos Estados Unidos.
A Guerra Fria foi um confronto de poder entre duas potências hegemônicas, disputando o mundo globalizado que se anunciava ainda discretamente. Como todo confronto de poder, cada lado escudava-se em uma capa de respeitabilidade ética, defendendo valores que seduziriam seus possíveis súditos: do lado americano, a liberdade; do lado soviético, a revolução proletária mundial.
No Brasil a Guerra Fria produziu o golpe militar de 1964, que possibilitou a Ditadura. Esta se acabaria em 1985, pelo mesmo mecanismo que a havia produzido: a Guerra Fria, neste caso em processo de deterioração. Formalmente extinta em 1991, pelo desmantelamento da União Soviética, a Guerra Fria teve, como ícone mais marcante de seu fim, a derrubada do Muro de Berlim, em 1989. O Muro de Berlim havia sido uma parede de concreto construída e, com o tempo, reforçada entre os lados leste (socialista) e oeste (capitalista) da cidade de Berlim. Desse modo, o muro representava fisicamente a fronteira nítida entre o domínio político da esquerda e o domínio político da direita, nos sentidos em que esses termos eram usados em meados do século XX. A Guerra Fria era, portanto, um confronto entre esquerda e direita.
O golpe militar de 1964 representou uma “derrota” da esquerda no plano bélico. Entretanto, teve e tem entre nós razoável sucesso a estratégia preconizada por Antonio Gramsci (genial pensador e um dos fundadores e líderes do Partido Comunista Italiano) para reverter a hegemonia cultural das classes dominantes. A ideia de Gramsci, em grandes linhas, é que, pelo controle dos meios de comunicação, das organizações religiosas e, sobretudo, do magistério, é possível reformar a mentalidade das gerações vindouras, de modo a criar, na superestrutura social, as condições que a revolução proletária produziria, se fosse viabilizada.
Feliz ou infelizmente, não vem ao caso, no Brasil nada é levado tão a sério assim. Desse modo, o relativo êxito da hegemonia cultural da esquerda traduziu-se pela demonização da direita, mais que por efetivas alterações no pensamento real da sociedade. Ocorreu que, ao mesmo tempo que a esquerda passava a ser clandestina, por temor da perseguição estatal, a direita também passava ser clandestina, por “vergonha cultural”. Ninguém mais no Brasil era de direita.  “Ser de direita” virara um palavrão, abundantemente distribuído a adversários políticos de qualquer matiz. Então, passou a ser comum ver pessoas verbalizarem o discurso da esquerda, porque é “de bom tom”, e pensarem e agirem de forma diferente, sem mesmo perceberem a contradição, porque o próprio significado do discurso só ficara corretamente inteligível a alguns ideólogos conscientes.
Como se sabe, o verdadeiro democrata é o oposto do “dono da verdade”, ou seja, é o oposto dos ideólogos de extremismos, tanto de direita quanto de esquerda. Não é, portanto, surpreendente que a contraposição à Ditadura tenha sido liderada, no seu aspecto mais visível, por opositores que, se pudessem, ficariam satisfeitos com outra ditadura: a sua própria ou de seus amigos.
Criou-se a lenda eleitoral de que a esquerda derrotara a Ditadura e conquistara a democracia. Não é verdade, mas, dizem os italianos, si non è vero è ben trovato, que se pode traduzir livremente como “é uma bela história, mesmo que não seja verdadeira”. Em política, como se sabe, a verdade é, em grande parte, irrelevante; os efeitos decorrem principalmente do que se imagina que seja e não do que é.
A transição brasileira para a democracia foi consentida. Um parecer do ministro Neri da Silveira transformado em Resolução do Superior Tribunal Eleitoral declarou a inaplicabilidade da fidelidade partidária no Colégio Eleitoral, possibilitando juridicamente a eleição de Tancredo Neves. Isto certamente foi facilitado pelo fato de ter o notório senhor Paulo Maluf atropelado o último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo, fazendo-se candidato pela Arena contra a vontade deste.
Tancredo Neves, um homem de centro, fora apoiado pela esquerda. Depois do breve interregno de Collor/P.C. Farias, vêm Fernando Henrique, considerado um homem de esquerda, e a quintessência da esquerda tolerada pelo regime militar: Luís Inácio Lula da Silva. O partido de Fernando Henrique, o PSDB, estruturara-se a partir de intelectuais de esquerda que, antes, formavam os “puros” do PMDB, qualificativo difícil de ser explicado e entendido, tratando-se de política partidária. O partido de Lula, o PT, tinha, em seus estatutos originais, compromisso com a revolução socialista, depois abrandado em tempos de democracia. Era, portanto, a esquerda no poder.
É verdade que o PT no poder não é o mesmo PT da oposição. Disseram-no, mais por atos que por palavras, o então presidente Lula e o então todo-poderoso ministro Dirceu quando defenestraram, por mal ou por bem, os petistas coerentes que saíram para fundar o PSOL. Entretanto, o governo que aí está, chefiado por D. Dilma, invenção política de Lula de quem fora um alter ego tecnicamente competente na administração do governo, é a esquerda “clássica” em toda sua glória: os derrotados de ontem, hoje vitoriosos, graças à democracia.
Chegamos, assim, às manifestações de junho de 2013. Não se trata de um movimento contra o governo e a favor da oposição. Não se trata de um protesto da esquerda contra a direita. A direita, no Brasil, com cara e identidade de direita, já havia desaparecido há muito tempo. Restava uma esquerda “clássica”, parada no tempo, ainda "lutando contra a Ditadura” e que, como a Carolina de Chico Buarque, não viu o tempo passar na janela.
Essa esquerda “clássica” acaba de ser enterrada pelos jovens na rua, que representam os interesses que ela, a esquerda, deveria estar defendendo, só que eles, os jovens, não querem, para isso, uma ditadura. Tal qual os que derrubaram o muro de Berlim e os regimes ditatoriais do leste europeu, com protestos e passeatas, eles não querem algo especifico, mas, apenas, denunciam que “isso que ai está” não pode continuar.
Este governo e seu principal partido não representam mais o santo guerreiro da esquerda personalizada contra o dragão da maldade da direita mais ou menos identificada. Acaba-se, desse modo, a sacralização dos que se arrogavam santidade política em virtude de terem “derrubado” a Ditadura. Acaba-se a blindagem de um grupo político que, alegadamente, é – e só ele o é – o defensor do povo e o único adversário político de nebulosas “elites” (que certamente existem, mas jamais são precisamente identificadas; como fantasma, o inimigo é mais assustador).

É o Muro de Berlim caindo no Brasil. A sociedade chegou a seu limite de tolerância com "isso que aí está", e não há salvadores da Pátria previamente ungidos a quem recorrer. 

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