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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Quadrilhas e quadrilhas



Durante os festejos de S. João, feéricos no Nordeste e relativamente acanhados no Sudeste e no Sul, um dos pontos altos da festa é a dança da quadrilha.
Um sertanejo caricato, de camisa xadrez berrante, chapéu de palha desfiado nas bordas, falsos remendos na calça de brim e, por vezes, bigode e cavanhaque grosseiramente simulados por marcas de rolha queimada apossa-se do microfone. Quando a sanfona se faz ouvir, começa a marcar a quadrilha: “Alavantu”... “anarriê”...
A seu comando, movem-se cavalheiros e damas cuidadosamente ataviados: rapazes em figurino parecido ao do marcador e moças em vestidos longos de chitão, adornados de rendas, fitas e enfeites exagerados, combinando com as tranças postiças dos cabelos e maquiagem de mau gosto, não raramente sarapintada de preto, em simulação de sardas.
Não sei bem se deva aqui reconhecer uma tradição ou a chacota politicamente incorreta ao mimetismo estropiado que o homem do campo fazia das quadrilhas dançadas nos salões aristocráticos. Nestes, um melífluo e amaneirado mestre de cerimônias orientava os movimentos de homens e mulheres, vestidos com a elegância da época, ordenando em francês escorreito: “Messieurdames, en avant tous... en arrière...
Estas imagens me vieram à mente quando a ministra Rosa Weber, em voto na Ação Penal 470, abriu uma dissidência para absolver do crime de quadrilha os réus acusados de corrupção passiva, pertencentes ao chamado “núcleo político”, no que foi acompanhada pela ministra Carmen Lúcia.
Se bem as compreendi, suas excelências entenderam que o caso em julgamento caracterizava mero concurso de pessoas para a prática de crime que as beneficiava individualmente e não o crime de quadrilha ou bando, de que trata o art. 288 do Código Penal. Na visão das ministras, para que se considere que atuam em quadrilha, é preciso que as pessoas sobrevivam dos produtos do crime e atuem com interesse de perturbar a paz pública. Pareceu-me – até pelos exemplos aduzidos pela ministra Rosa Weber – que suas excelências consideram a paz pública vulnerável apenas a indivíduos socialmente estigmatizados pela marginalidade caracterizada pelo modo de vida por eles assumido e neles reconhecido pela sociedade.
Este entendimento parece ser compartilhado pelo público em geral. Em outra sessão, um jovem professor de direito, convidado pela emissora televisiva Globo News, tentava explicar a aplicação ao caso da teoria do domínio do fato e afirmava que esse era um modo de tratarem-se crimes perpetrados por grandes e complexas organizações criminosas. Exemplificando com o PCC (Primeiro Comando da Capital), fez veemente ressalva para esclarecer que não estava comparando a organização criminosa da Ação Penal 470 com o PCC.
Por que não? – pergunto eu.
O ministro Celso de Mello em seu luminoso voto esclareceu a questão: “Entendo que o Ministério Público expôs na peça acusatória eventos delituosos revestidos de extrema gravidade e imputou aos réus ora em julgamento ações moralmente inescrupulosas e penalmente ilícitas que culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles concebido e executado, em verdadeiro assalto à Administração Pública, com graves e irreversíveis danos ao princípio ético- jurídico da probidade administrativa e com sério comprometimento da dignidade da função pública, além de lesão a valores outros, como a integridade do sistema financeiro nacional, a paz pública, a credibilidade e a estabilidade da ordem econômico-financeira do País, postos sob a imediata tutela jurídica do ordenamento penal. [...] O sistema constitucional instituiu normas e estabeleceu diretrizes destinadas a obstar práticas que culminem por patrimonializar o poder governamental, convertendo-o, em razão de uma inadmissível inversão dos postulados republicanos, em verdadeira “res domestica”, degradando-o, assim, à condição subalterna de instrumento de mera dominação do Estado, vocacionado, não a servir ao interesse público e ao bem comum, mas, antes, a atuar como incompreensível e inaceitável meio de satisfazer conveniências pessoais e de realizar aspirações governamentais e partidárias.[...] A corrupção deforma o sentido republicano de prática política, compromete a integridade dos valores que informam e dão significado à própria ideia de República, frustra a consolidação das instituições, compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis como as da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento do País, além de afetar o próprio princípio democrático. [...] Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e o rigor das leis desta República, porque significam tentativa imoral e ilícita de manipular, criminosamente, à margem do sistema constitucional, o processo democrático, comprometendo-lhe a integridade, conspurcando-lhe a pureza e suprimindo-lhe os índices essenciais de legitimidade, que representam atributos necessários para justificar a prática honesta e o exercício regular do poder aos olhos dos cidadãos desta Nação. Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente, revela as gravíssimas consequências que derivam dessa aliança profana, desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados, e de parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos, devidamente comprovados, que só fazem desqualificar e desautorizar, perante as leis criminais do País, a atuação desses marginais do Poder.”
Portanto – digo eu – a atuação desses “marginais do poder” não é menos lesiva à paz pública do que a dos marginais que aparecem nas reportagens policiais. São até piores, porque, em vez de a perturbarem na superfície, ferem basilarmente a paz pública ao desmoralizarem a própria essência dos princípios democráticos e republicanos. Desse modo, retiram credibilidade à ordem jurídica cuja sacralidade no imaginário popular é a essência da estabilidade social.
No Brasil, é costumeiro que só se veja gravidade – se é que se vê – nos atos de corrupção em proveito financeiro próprio. Os mentores dessa grande e complexa organização criminosa não encheram os próprios bolsos, mas colocaram sua ação deletéria a serviço de um projeto de poder político. Isto não os exime de execração. A demolição dos alicerces da ordem republicana, tão bem enfatizada pelo eminente ministro Celso de Mello, é o crime maior contra o sistema político que o povo quis consagrar na Carta Magna de 1988.
Não discuto as tecnicalidades jurídicas expendidas pelas ilustres ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia. Observo, apenas, que a diferença entre a quadrilha do PCC e a do mensalão parece-me semelhante à diferença entre a quadrilha da roça e a dos salões: diversas na aparência, idênticas na substância. Com a agravante de que é a quadrilha dos salões do poder que me desperta maior repugnância.

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