“Ninguém
pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei” – § 2º do art. 141 da Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946. Esse parágrafo me fascinou quando
o li pela primeira vez, por volta de 1954. E o garoto de 12 anos que eu era, amante
da liberdade por instinto e desde sempre, amou também a lei, essa mesma lei que
tinha o poder de balizar-me a conduta, mas, que por ser a única autorizada a
fazê-lo, constituía, ipso facto, minha
proteção contra o arbítrio dos mais poderosos do que eu.
É
por isso, senhor diretor geral da Faculdade Ruy Barbosa, professor Kenneth
Nunes Tavares de Almeida, senhores coordenadores do curso de Direito,
professora Simone Azevedo Rocha e professor Emanuel Lins Freire Vasconcelos,
senhora Patronesse da turma, professora Angélica de Mello Ferreira, senhores
professores homenageados, Osvaldo Almeida Neto e Simone Maria Figueiredo
Moutinho, meu estimado colega professor Kalil, meus antigos alunos e afilhados
de formatura, minhas senhoras e meus senhores, que, antes mesmo das saudações protocolares
às ilustres personalidades da mesa e a todos os presentes, como faço agora, quis referir-me à lei,
em que reverencio o direito, que vos conclamo, todos, a praticar em sua mais
elevada altitude.
O
princípio da legalidade é um pilar da civilização. Sua recusa ou fragilização é
o convite ao arbítrio – a prevalência incontrastável do comando voluntarista e
personalizado daqueles que têm a força a seu favor.
Ao
fazer-se efetiva, a lei evoca, na verdade, um trinômio: ela própria, a lei, o
mandamento que normatiza a vida social e individual; a justiça, que nela subjaz
como princípio de racionalidade; e o direito, em que ela floresce como hábito
de convivência que torna possível a conciliação dos mais variados interesses. Esses
três conceitos coexistem e complementam-se reciprocamente, condicionando-se uns
aos outros para serem o fundamento de uma ordem que, neles enraizada, já não
será a ordem de fato, imposta pelo arbítrio, mas será a ordem jurídica,
ancorada na racionalidade da justiça, aberta à análise, à crítica e ao
aperfeiçoamento pelo exercício do intelecto. Ser civilizado é viver sob uma
ordem jurídica.
Mesmo
o comando da lei, porém, envolve, em tese, a vontade motriz de um ente poderoso
que paira acima de tudo e legitima a lei e a ordem dela decorrente. Essa vontade
é sacralizada e identificada com os padrões de verdade, justiça e bondade, para
convalidar a obediência do grupo, não importa que o poderoso invocado seja um
rei divino da antiguidade, a Providência racional dos estoicos, o Deus
judaico-cristão da patrística e da escolástica medievais; o monarca absoluto
por direito divino, da baixa Idade Média; o Estado-Leviatã, de Hobbes; o Povo,
da democracia liberal; a Vontade Geral totalitária, de Rousseau; o Partido, de
Gramsci; ou o Estado constitucional com que convivemos. Busca-se, invocando-se
esses entes, transferir legitimidade a sistemas compreensíveis e compreensivos
que pretendem concretizar a manifestação da vontade soberana, porque operam a
partir dela, ou em seu nome, ou se consideram seu canal expressivo.
O
que distingue, então, a ordem jurídica do arbítrio, não é a pretensa origem da
legitimidade do poder nem a estrutura e o funcionamento do sistema por meio do
qual ele é exercido. A diferença está no mecanismo da obediência. No domínio do direito, já não é mais a
vontade aleatória de quem tem a força o que determina a conduta de cada um dos
que estão submetidos a suas ordens; são estes que, conhecendo a norma, adquirem
condições de, por decisão própria, ajustarem comportamentos para torná-los (ou
não) adequados à exigência impessoal do mandamento. Não é mais quem manda o
deflagrador da ação individual, mas, sim, as escolhas de quem obedece. Passa-se
do voluntarismo absoluto para a racionalidade da decisão individual quanto ao
agir, e isto é liberdade. É no exercício da liberdade que se constrói o império
da lei.
Em
que pese as diferenças ideológicas, por vezes radicais, entre os entes aos
quais se atribui a autoridade suprema, todas essas entidades e os sistemas
engendrados a partir delas têm uma coisa em comum: são abstrações em que as
pessoas creem como fundamento suficiente para as orientações normativas que
devem ordenar a vida pessoal e a vida em comum, mas cuja intervenção no mundo
concreto requer a intermediação de prepostos que são seres humanos individuais,
isto é, pessoas. Nenhuma construção civilizacional ao longo da história
conseguiu suprimir a necessidade de pessoas que entendem como pessoas,
deliberam como pessoas e agem como pessoas. Só pessoas agem, e agem a partir da
compreensão que possam alcançar e do poder que possam exercer.
Essa
percepção está no fundamento da transformação radical de visão de mundo que se
chamou “a modernidade”. A modernidade é, antes de tudo, humanismo. Seu traço
mais profundo foi colocar o homem no centro e no ápice da realidade. Seu
sintoma, a sobrevalorização da liberdade essencial do indivíduo insuscetível de
reduzir-se a simples epifenômeno da vida social.
Não
vos cansarei com um discurso acerca da liberdade e do resgate dos valores hoje
mal compreendidos da modernidade (até porque pediram-me um discurso de apenas
10 minutos). Não houvesse outras razões, bastaria referir a tentativa exitosa de
Habermas de compatibilizar, especialmente mediante o conceito de razão
comunicativa, o indivíduo irredutível da modernidade com as exigências
pós-modernas de coletivismo, para rejeitar a necessidade, preconizada por
alguns, de destruir-se essa irredutibilidade do indivíduo como se fora ela o
estorvo à vida perfeita sobre a terra.
A
irredutibilidade do indivíduo, indispensável, aliás, à doutrina de sua
dignidade intrínseca, traz para o próprio nível da ação pessoal o compromisso
com o trinômio civilizatório básico: a lei, a justiça e o direito.
Este
é o pensamento que inspira minha mensagem a vós, que tão generosamente me
escolhestes para paraninfar-vos neste momento. Independentemente da crença
religiosa, da posição ideológica, da filiação política e dos interesses
pessoais ou coletivos com que vos identifiqueis, lembrai-vos de que vossas
ações são de vossa decisão, caso a caso, e as consequências dessas ações vos
seguirão inapelavelmente. Não vos deixeis cegar pelos entes aos quais alieneis
porventura vossa inteligência: nada vos exime, a vós, da responsabilidade pelo
vosso agir. Se quereis ser civilizados, agi considerando a lei, a justiça e o
direito.
Talvez
vos tenham ensinado que não sois responsáveis pelo mal que não fazeis
propositalmente. Talvez vos tenham ensinado que somos sempre vítimas de alguém
ou de alguma coisa que se define nebulosamente, o que nos retiraria a
responsabilidade pelo estado da nossa vida e da nossa circunstância ou que,
paradoxalmente, lançaria sobre nossos ombros todas as culpas da história, já
que somos, afinal, o monstro indefinido que se esconde nela. Talvez vos tenham
ensinado que é legítimo esperar o paraíso sem esforço, um paraíso que seria,
talvez, como o estado de natureza em que Rousseau acreditava sem outra base que
não fosse seu próprio desejo de crer que um estado assim tivesse algum dia
havido ou pudesse, algum dia, vir a existir.
Entretanto
eu vos digo que somos, sim, responsáveis pelas consequências dos nossos atos e
que nos cabe ponderar de maneira profunda as possíveis consequências de nossas
ações antes de praticá-las. Eu vos digo que as más ações alheias e as
circunstâncias adversas podem e devem ser combatidas para prevenção dos efeitos
deletérios que possam ter, mas o fato de sermos prejudicados não nos impõe nem
recomenda a inércia nem a expectativa de que, ressalvada a tutela genérica da
lei, alguém além de nós mesmos haja de vir em nosso socorro com a solução de
todos os nossos problemas. Eu vos digo, também, que nada, absolutamente nada,
se consegue sem esforço. Eu vos digo, mais, que a natureza, ela própria, não é
determinista nem linear: não há necessariamente proporcionalidade entre esforço
e resultado e isso pode ser decepcionante, mas só a desistência é que impõe
inapelavelmente a derrota. Eu vos digo, ainda, que a injustiça se disfarça em
hipocrisia e que não mudareis o mundo pelo vosso discurso acerca do que
proclamais acreditar, mas apenas pelas vossas ações; agi, portanto, de acordo
com a retórica que escolheis como válida, não em contradição com ela.
Eu
creio em vós. Ao longo da vida, as ideias passam, as crenças mudam, os
interesses se alteram, mas um bom caráter é a marca do indivíduo. Não sois
infalíveis, podeis errar. Mas envergonhai-vos do erro e buscai corrigi-lo, não
apenas no futuro, mas no presente. Reconhecer o erro e desculpar-se pode não
desfazer o mal feito, mas restaura, no ofendido, a crença em uma natureza
humana que precisamos acreditar positiva para podermos conviver. Vivemos tempos
tristes em que é preciso conclamar-se os indivíduos à responsabilidade e à
vergonha, mas eu convivi convosco e creio em vós.
Assumis,
a partir de agora, um papel de poder na sociedade em que viveis. Não vos
deixeis corromper, nem pelo dinheiro nem pela vaidade. Ganhai honestamente a
recompensa do vosso trabalho e da vossa inteligência. Quando ascendais aos
poderes da República, lembrai-vos de que sois os servidores do mais humilde dos
cidadãos e guardiães da sua liberdade e de seus direitos. Promovei os interesses
legítimos que surjam diante de vós, e não tenhais constrangimento em repudiar
os espúrios que se travestem em formalidades criativas nas fímbrias da
legalidade, embora manifestamente imorais. Tende o pudor de não usar a
pirotecnia jurídica, que aprendestes a empregar para promover o direito,
prostituindo-a em favor da injustiça, da burla da lei, da impunidade dos malfeitores.
Não vos iludais: estais construindo o mundo de vossos filhos e netos, não
apenas o vosso próprio.
Quero,
por derradeiro, dizer-vos que destes uma alegria incalculável a este velho
professor que acaba de completar seu jubileu de ouro na educação superior: 50
anos de dedicação ao ensino, pesquisa e administração universitária. Ser vosso
paraninfo e ter o nome associado à identificação permanente dessa turma! Não
consigo recordar-me de outra ocasião em que estudantes de direito tenham
escolhido para tão grande honra não um jurista, mas um doutor em filosofia que
com eles conviveu só nos primeiros anos da academia. Não imaginais a emoção que
me provocastes com vosso gesto. Nada mais deveria desejar de vós, mas, ainda
assim, ouso fazer-vos um último pedido: tende sempre diante dos olhos de vossa
mente o trinômio sagrado: a lei, a justiça e o direito. Agi para preservá-lo e para
aperfeiçoá-lo conforme vossa consciência e vossa inteligência. Superai-vos
sempre, e superai vossos maiores. Sede melhores do que foi a minha geração.
Sede melhores do que eu.
Bravo... Bravíssimo...
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