Um juiz federal foi flagrado dirigindo o carro de luxo,
mandado apreender por ele, pertencente a um bilionário em decadência cujos
negócios mais que suspeitos estão sob exame da justiça. Há tempos, um juiz foi notícia
por dar voz de prisão a um funcionário de empresa aérea que, no exercício
estrito de sua função, não lhe facultou o embarque em voo que já havia sido
fechado. Outro, apareceu na mídia por ter, alegadamente, invocado a condição de
magistrado para furtar-se a fiscalização rotineira de trânsito. Neste caso,
agrava-se a circunstância, de vez que a agente do poder público que questionara o condutor do veículo foi condenada
por desrespeito à excelência por afirmar: “ele é juiz, mas não é Deus”. Das
possíveis irregularidades associadas ao magistrado e seu carro nada se quer
saber, face a tamanho desrespeito. Pelo menos é o que parecem ter entendido as excelências de
segundo grau. Não é necessário recordar as peripécias financeiras do tristemente
famoso juiz Lalau, cujo enriquecimento ilícito mediante desvio de verbas para a
construção do prédio de um tribunal regional do qual era presidente o levou,
mediante sentença transitada em julgado, para a cadeia, além de ter cassada a
aposentadoria compulsória.
No caso dos magistrados, não é só a corrupção rasteira que
causa repulsa. O abuso de poder, o favorecimento ilícito de qualquer natureza
em decorrência da condição judicante, qualquer desvio da correção estrita que,
se não a lei, a majestade da justiça requer, a simples deselegância no
exercício funcional, tudo isso é, a um tempo, revoltante e assustador para o
povo, que vê – como deve ver no regime democrático-republicano – o Poder
Judiciário como último refúgio e garantia dos que não têm outros meios de efetivar
seus direitos.
Quando a ministra aposentada Eliana Calmon, então no
exercício da Corregedoria-Geral da Justiça Federal, declarou que havia “bandidos
de toga”, causou enorme celeuma, capitaneada pelo então presidente do Supremo
Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministro Antônio Cezar
Peluso. Ao ministro Peluso parecia que tal declaração se refletia negativamente
sobre o Poder Judiciário, enlameando a fama dos magistrados em geral.
Não acompanho o receio do eminente presidente, à época, do
Supremo Tribunal Federal. A ministra Calmon jamais disse que todos, ou a
maioria, ou sequer grande número de juízes merecia a pecha desmoralizadora. O
que sua excelência afirmava era o saudável interesse em apontar a excrecência
exatamente para evitar a desmoralização de algo tão essencial ao Estado de
Direito: o respeito à judicatura em decorrência do reconhecimento do caráter
ilibado de todos os magistrados. E o único modo de afirmar esse compromisso
incondicional da magistratura, composta por seres humanos falíveis e
suscetíveis de desvios de conduta, era que o próprio corpo do Judiciário se
antecipasse à repugnância popular e extirpasse de seu meio os que desonrassem a
toga, estes sim, verdadeiros agressores dos valores republicanos e da imagem dos colegas.
A Constituição exige, para integrar os tribunais superiores,
reputação ilibada. Não o exige, expressamente, da magistratura em graus
inferiores. Entretanto, parece comezinho que a boa reputação dos magistrados em
geral seja um requisito fundamental para a credibilidade da Justiça.
A palavra reputação vem do latim reputatione, derivada do verbo putare,
que significa supor. Não é estranho, pelo menos nos meios jurídicos, o adjetivo
putativo, que significa que algo é
suposto, mesmo que em virtude apenas de uma aparência enganosa. Reputação é uma
avaliação social difusa e espontânea que de nenhum modo se confunde com
sentença condenatória transitada em julgado. A sentença condenatória transitada
em julgado, no regime da presunção da inocência, é essencial para que se
atribua o delito ao agente, mas não é isso que define sua reputação.
Caio Júlio Cesar, patrício romano que viveu entre 100 a. C.
e 44 a. C., foi questor, edil, pretor, governador da Gália e da Ilíria com
poderes proconsulares, cônsul, ditador e Pai da Pátria. Frequentemente seu nome
é associado ao título de imperator,
usualmente atribuído a um general vitorioso antes da celebração ritual de seu
triunfo. A Cesar, porém, esse título foi dado em caráter permanente, como lhe
foram dados, vitaliciamente, os poderes de tribuno, de censor e de ditador.
Essa carreira brilhante começou, porém, de modo
precário. Embora sua família fosse nobre, não era abastada. Sua tia Júlia,
casara-se com Caio Mário, plebeu que se tornara um general vitorioso e fora
cônsul por sete vezes. Mário se havia convertido em líder dos populares, por oposição aos optimates, liderados por Lúcio Cornélio
Sila. As tensões sociais da Roma do primeiro século a. C. explodiram em uma guerra
civil que, depois da morte de Mário, foi vencida por Sila e seus partidários.
Sila foi proclamado ditador vitalício e moveu perseguição aos apoiadores e
parentes de Mário, entre eles seu jovem sobrinho, que, tendo a vida preservada
por ser considerado politicamente inofensivo, foi obrigado a deixar Roma. Só
com a morte de Sila, em 78 a. C., Cesar voltou à cidade e iniciou o caminho que
o levaria ao poder máximo.
Em 63 a. C. Cesar foi eleito Pontifex Maximus, cargo vitalício que, sem impedir os demais que lhe
alicerçariam o poder político, dava-lhe o controle sobre a vida religiosa de
Roma. Cornélia Cinila, sua primeira esposa, morreu de parto em 69 a. C. e Cesar
casou-se, no ano seguinte, com Pompeia Sila, neta do falecido ditador. Em 62 a.
C., era preciso celebrar os ritos da Bona Dea (Boa Deusa), realizados na casa do Pontifex com a ausência obrigatória de todos os homens. Pela posição do marido, cabia a Pompeia supervisionar essa celebração. Aproveitando-se da ausência masculina, Públio Clódio
Pulcro, jovem imberbe que se imagina enamorado de Pompeia, conseguiu entrar na
casa disfarçado de mulher, possivelmente com a intenção de seduzi-la. Nada
indica que Pompeia fosse conhecedora ou culpada desse sacrilégio, conforme o
próprio César admitiu publicamente. Entretanto, ele divorciou-se dela, alegando que
"à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta". Como
se vê, não se tratou de culpabilidade, mas de reputação.
Bom seria que todos os magistrados, dos ministros de STF ao
mais novo juiz substituto aprovado “raspando” em algum dos concursos que
reprovam a maioria esmagadora dos candidatos, guardassem ciosamente a mesma
preocupação do Pater Patriae e se recordassem de que sua reputação não é, como a de nós outros mortais comuns, um
assunto particular. É um absurdo supor-se que seja preciso “provar” que o
comportamento de aparência indecorosa de um juiz “não seja crime”. O decoro da
magistratura é patrimônio da sociedade, que nela deposita suas últimas
esperanças de que a honestidade e a decência se imponham à vida pública. Cesar divorciou-se
de Pompeia quando sua reputação se tornou duvidosa, mas não há como divorciar-se,
na mente e no sentimento do povo, a confiança na Justiça da confiança no juiz. Que me desculpem suas excelências, mas não lhes cabe o “benefício
da dúvida”. É preciso que, tal qual a mulher de Cesar, estejam acima de
qualquer suspeita, não depois de esquadrinhado seu comportamento no devido processo
legal, mas diante da luminosidade solar do que aparece à opinião pública.
A vaidade, a ambição, a vertigem do poder, todos esses
pecados grandes e pequenos que assolam a vida de qualquer um de nós não podem
ser perdoados aos magistrados. São eles os que guardam a lei, o direito, a
esperança do cidadão na vida democrática e civilizada. Os que não quiserem ou não
puderem suportar o fardo hercúleo dessa responsabilidade grandiosa, por favor, procurem
outra coisa para fazer.
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