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segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A unanimidade não é democrática

Há mais de 50 anos, assisti a um filme cujo nome não me lembro. Não me lembro, também, de quais foram os atores. Tampouco me lembro do enredo. Deste, tenho, apenas, vaga recordação, se é que é mesmo memória e não invenção minha para dar sentido à única cena de que ficou fixada em minha mente. Esta, eu a tenho presente com plena clareza e revejo com exatidão, como se a estivesse assistindo agora mesmo.
Creio – apenas creio – que se tratava de especulação imobiliária em alguma cidadezinha dos Estados Unidos. Havia o homem rico e de chapéu preto que desejava utilizar ampla área local para um empreendimento milionário.  Em parte persuadindo e em parte corrompendo, parece que conseguiria autorização do Conselho Municipal ou de uma assembleia de cidadãos – eu avisei que não me lembro – para efetuar a construção naquele lugar. O casal de protagonistas – a mocinha encantadora e seu namorado bonitão – opôs-se à empreitada e, ao fim de muitas peripécias, conseguiu expor os interesses inconfessáveis do magnata, impedindo que ele tivesse atendidos os propósitos egoístas: o clássico triunfo do bem contra o mal, na época em que Hollywood era moralista.
Tenha sido este o enredo ou esteja eu a confundi-lo com o de outro filme, fato é que, aliado ao casal, estava um homem rústico e assertivo, aparentemente um agricultor, porque trajava o tipo de macacão de frente única que se chamava (e talvez ainda se chame) “jardineira”. Esse homem. ao longo do filme, criava problemas e levantava objeções por tudo e por nada, mas estava do lado “do bem”.
A única cena de que me recordo com perfeita nitidez ocorre ao final da película. Resolvidos os problemas, o Conselho Municipal (ou assembleia dos cidadãos, não me lembro) reuniu-se para aprovar a destinação convencionalmente boa da tal área da cidade. Todos estavam a favor, mas, quando o presidente perguntou quem votava “sim”, todos o fizeram, mas o “criador de casos” gritou, das galerias, um sonoro “não”. Com ar de fadiga e desamparo, o presidente perguntou: “Mas por quê? Qual é o problema agora?” E o “discordante”, sorrindo, respondeu com a frase que jamais esqueci: “A unanimidade não é democrática!”
Lembrei-me da frase e da cena vendo a posse de D. Dilma Rousseff em seu segundo mandato presidencial. Após 40 minutos, aproximadamente, de fala da presidente empossada, fui impactado pelo inesperado. Este não veio do discurso principal, mas – pasme-se – da fala do senador Renan Calheiros.
O senador Calheiros está longe do que costuma ser apontado como reserva moral da nacionalidade, lugar comum com que, na época do filme a que me referi, eram saudadas as pessoas supostas acima de qualquer suspeita. Coincidentemente, sua vida pública revela uma adesão permanente e irrestrita aos governos – um governismo para ninguém botar defeito. Pois foi o senador Calheiros que fez um discurso falando dos princípios democráticos e das responsabilidades do Congresso Nacional. Em certo trecho, ele disse: ““Estou convencido de que a oposição, que é parte essencial do poder Legislativo, tem como contribuir dada sua responsabilidade e maturidade. O espaço da oposição é sagrado, sua voz critica insubstituível. Antes ser crivado pela crítica do que ser arruinado pela bajulação. Onde não há espaço para a antítese, os elogios devem ser vistos com reserva. A crítica, é a primeira manifestação de quem deseja ajudar e, em última instância, é o exercício pleno da liberdade de expressão, alicerce supremo da democracia."
Nesse momento, o rosto de D. Dilma não revelava entusiasmo. Minha primeira impressão foi a de que ela não havia gostado de ouvir palavras como “oposição’’ e “crítica” em uma festa cívica que, afinal de contas, era dela. Pensando melhor, talvez sua expressão revelasse apenas o cansaço do corre-corre eleitoral ainda não mitigado pela placidez da praia de Aratu, ou possíveis noites mal dormidas na tentativa de costurar a base aliada à custa do alentado ministério.
Por que terei pensado mal de D. Dilma, ainda que só por um momento, e por que me terá emocionado o discurso do senador Calheiros, se ele só diz o que é óbvio para qualquer democrata?
A razão, descobri no facebook, lendo o comentário de uma senhora, aparentemente afeiçoada à presidente, que criticava as pessoas que a “defendiam” da opinião de duas jornalistas que a chamaram de feia e deselegante. Os defensores presidenciais reagiram dizendo que feias e deselegantes eram elas, as jornalistas. A senhora cuja postagem li (e compartilhei), luminosamente coerente, dizia que não faz sentido objetar a que se critique uma pessoa por sua aparência criticando por sua aparência, em troca, os autores, ou, no caso, autoras, da crítica inicial.
Mas o que disse essa senhora que me despertou admiração a não ser o óbvio? Que tempos são esses em que o óbvio espanta e desperta elogios?
São tempos em que os debates reproduzem o nível do bate-boca dos moleques da minha infância: “Tua mãe é isso ou aquilo! – Não, é a tua!”
As opiniões disfarçam ofensas. Os argumentos são substituídos por esquemas visuais ou vocabulares cuja simplificação absurda distorce a realidade, de modo que se fica a cogitar se a composição decorreu de ignorância mesmo ou de má-fé de quem a fez. Não se dá ao Outro o benefício da dúvida. A expressão latina, usual outrora, ad argumentandum tantum, que já fora banida do vocabulário quando os estudos clássicos entraram em desuso, teve expulso, também, o conteúdo dos diálogos e dos raciocínios. A fórmula indicava que se iria acolher as alegações do adversário apenas para argumentar, isto é, sem admitir sua veracidade ou procedência, mas tão somente para ter a oportunidade de oferecer refutação racional.
A tolerância foi jogada fora junto com o latim. O “mas” atrai o ultraje e o “discordo” convida à agressão. Não sei se as pessoas, em grande número, tornaram-se completamente desprovidas da capacidade de argumentar ou se nossa “emotividade latina” exacerbou-se a ponto de não precisar sequer ouvir o argumento da outra parte para considerar o opositor inimigo do povo, da Pátria, da humanidade e do que mais seja. Isto revela uma fragilidade extrema que se traveste na tentativa de prevalecer pela redução do contraditório ao silêncio.
Estamos sob o domínio da verdade quantitativa. As pessoas imaginam que sua verdade decorre e depende da unanimidade. A mentalidade dominante parece ser a de uma versão (cuja veracidade histórica é questionada) da destruição da famosa biblioteca de Alexandria, em que o califa Omar ibn Al-Khattab teria dito: “se esses livros estiverem de acordo com o Alcorão, não precisamos deles; e se eles se opuserem ao Alcorão, devem ser destruídos". A diferença é que não se clama pela destruição das opiniões e suas expressões; clama-se, apenas, pela obrigatoriedade da repetição delas, pela reiteração das mesmas posições e pelo elogio permanente de alguma visão de mundo cuja contestação tornou-se crime capital – na Idade Média, seria arte do demônio, merecedora de um auto de fé.

Entretanto, eu conheço algumas dessas pessoas e sei que elas dizem ser democratas; mais, elas acreditam, em boa –fé, que são democratas! Senhores, (ou senhoras e senhores, como é politicamente correto) seja qual for a opinião que tiverem e independentemente do mérito que lhe atribuírem, deem-me (e, para esse efeito a toda gente), como coisa natural e digna, o direito de discordar. A unanimidade não é democrática!

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