Há mais de 50 anos, assisti a um filme cujo nome não me
lembro. Não me lembro, também, de quais foram os atores. Tampouco me lembro do
enredo. Deste, tenho, apenas, vaga recordação, se é que é mesmo memória e não
invenção minha para dar sentido à única cena de que ficou fixada em minha mente.
Esta, eu a tenho presente com plena clareza e revejo com exatidão, como se a
estivesse assistindo agora mesmo.
Creio – apenas creio – que se tratava de especulação
imobiliária em alguma cidadezinha dos Estados Unidos. Havia o homem rico e de
chapéu preto que desejava utilizar ampla área local para um empreendimento milionário. Em parte persuadindo e em parte corrompendo,
parece que conseguiria autorização do Conselho Municipal ou de uma assembleia
de cidadãos – eu avisei que não me lembro – para efetuar a construção naquele
lugar. O casal de protagonistas – a mocinha encantadora e seu namorado bonitão –
opôs-se à empreitada e, ao fim de muitas peripécias, conseguiu expor os interesses
inconfessáveis do magnata, impedindo que ele tivesse atendidos os propósitos egoístas: o clássico triunfo do bem contra o mal, na época em que Hollywood era
moralista.
Tenha sido este o enredo ou esteja eu a confundi-lo com o de
outro filme, fato é que, aliado ao casal, estava um homem rústico e assertivo,
aparentemente um agricultor, porque trajava o tipo de macacão de frente única
que se chamava (e talvez ainda se chame) “jardineira”. Esse homem. ao longo do
filme, criava problemas e levantava objeções por tudo e por nada, mas estava do
lado “do bem”.
A única cena de que me recordo com perfeita nitidez ocorre ao
final da película. Resolvidos os problemas, o Conselho Municipal (ou assembleia
dos cidadãos, não me lembro) reuniu-se para aprovar a destinação convencionalmente
boa da tal área da cidade. Todos estavam a favor, mas, quando o presidente
perguntou quem votava “sim”, todos o fizeram, mas o “criador de casos” gritou,
das galerias, um sonoro “não”. Com ar de fadiga e desamparo, o presidente
perguntou: “Mas por quê? Qual é o problema agora?” E o “discordante”, sorrindo,
respondeu com a frase que jamais esqueci: “A unanimidade não é democrática!”
Lembrei-me da frase e da cena vendo a posse de D. Dilma
Rousseff em seu segundo mandato presidencial. Após 40 minutos, aproximadamente,
de fala da presidente empossada, fui impactado pelo inesperado. Este não veio
do discurso principal, mas – pasme-se – da fala do senador Renan Calheiros.
O senador Calheiros está longe do que costuma ser apontado
como reserva moral da nacionalidade, lugar comum com que, na época do filme a
que me referi, eram saudadas as pessoas supostas acima de qualquer suspeita.
Coincidentemente, sua vida pública revela uma adesão permanente e irrestrita
aos governos – um governismo para ninguém botar defeito. Pois foi o senador
Calheiros que fez um discurso falando dos princípios democráticos e das
responsabilidades do Congresso Nacional. Em certo trecho, ele disse: ““Estou
convencido de que a oposição, que é parte essencial do poder Legislativo, tem
como contribuir dada sua responsabilidade e maturidade. O espaço da oposição é
sagrado, sua voz critica insubstituível. Antes ser crivado pela crítica do que
ser arruinado pela bajulação. Onde não há espaço para a antítese, os elogios
devem ser vistos com reserva. A crítica, é a primeira manifestação de quem
deseja ajudar e, em última instância, é o exercício pleno da liberdade de
expressão, alicerce supremo da democracia."
Nesse momento, o rosto de D. Dilma não revelava entusiasmo.
Minha primeira impressão foi a de que ela não havia gostado de ouvir palavras
como “oposição’’ e “crítica” em uma festa cívica que, afinal de contas, era dela.
Pensando melhor, talvez sua expressão revelasse apenas o cansaço do corre-corre
eleitoral ainda não mitigado pela placidez da praia de Aratu, ou possíveis
noites mal dormidas na tentativa de costurar a base aliada à custa do alentado
ministério.
Por que terei pensado mal de D. Dilma, ainda que só por um
momento, e por que me terá emocionado o discurso do senador Calheiros, se ele
só diz o que é óbvio para qualquer democrata?
A razão, descobri no facebook,
lendo o comentário de uma senhora, aparentemente afeiçoada à presidente, que
criticava as pessoas que a “defendiam” da opinião de duas jornalistas que a
chamaram de feia e deselegante. Os defensores presidenciais reagiram dizendo
que feias e deselegantes eram elas, as jornalistas. A senhora cuja postagem li
(e compartilhei), luminosamente coerente, dizia que não faz sentido objetar a
que se critique uma pessoa por sua aparência criticando por sua aparência, em
troca, os autores, ou, no caso, autoras, da crítica inicial.
Mas o que disse essa senhora que me despertou admiração a
não ser o óbvio? Que tempos são esses em que o óbvio espanta e desperta
elogios?
São tempos em que os debates reproduzem o nível do bate-boca
dos moleques da minha infância: “Tua mãe é isso ou aquilo! – Não, é a tua!”
As opiniões disfarçam ofensas. Os argumentos são substituídos
por esquemas visuais ou vocabulares cuja simplificação absurda distorce a
realidade, de modo que se fica a cogitar se a composição decorreu de ignorância
mesmo ou de má-fé de quem a fez. Não se dá ao Outro o benefício da dúvida. A
expressão latina, usual outrora, ad argumentandum
tantum, que já fora banida do vocabulário quando os estudos clássicos
entraram em desuso, teve expulso, também, o conteúdo dos diálogos e dos raciocínios. A
fórmula indicava que se iria acolher as alegações do adversário apenas para argumentar, isto é, sem
admitir sua veracidade ou procedência, mas tão somente para ter a oportunidade
de oferecer refutação racional.
A tolerância foi jogada fora junto com o latim. O “mas” atrai
o ultraje e o “discordo” convida à agressão. Não sei se as pessoas, em grande
número, tornaram-se completamente desprovidas da capacidade de argumentar ou se
nossa “emotividade latina” exacerbou-se a ponto de não precisar sequer ouvir o
argumento da outra parte para considerar o opositor inimigo do povo, da Pátria,
da humanidade e do que mais seja. Isto revela uma fragilidade extrema que se
traveste na tentativa de prevalecer pela redução do contraditório ao silêncio.
Estamos sob o domínio da verdade quantitativa. As pessoas
imaginam que sua verdade decorre e depende da unanimidade. A mentalidade dominante
parece ser a de uma versão (cuja veracidade histórica é questionada) da
destruição da famosa biblioteca de Alexandria, em que o califa Omar ibn Al-Khattab
teria dito: “se
esses livros estiverem de acordo com o Alcorão, não precisamos deles; e se eles
se opuserem ao Alcorão, devem ser destruídos". A diferença é que não se
clama pela destruição das opiniões e suas expressões; clama-se, apenas, pela
obrigatoriedade da repetição delas, pela reiteração das mesmas posições e pelo
elogio permanente de alguma visão de mundo cuja contestação tornou-se crime
capital – na Idade Média, seria arte do demônio, merecedora de um auto de fé.
Entretanto, eu conheço algumas dessas pessoas e sei
que elas dizem ser democratas; mais, elas acreditam, em boa –fé, que são
democratas! Senhores, (ou senhoras e senhores, como é politicamente correto)
seja qual for a opinião que tiverem e independentemente do mérito que lhe
atribuírem, deem-me (e, para esse efeito a toda gente), como coisa natural e
digna, o direito de discordar. A
unanimidade não é democrática!
Perfeito, professor!
ResponderExcluirÓtimo! Deu até vontade de discordar de vc, só pra ser democrática. :-)
ResponderExcluirMas, adorei.