Foi pelas mãos do professor
Plínio Sussekind Rocha, de quem fui o último assistente, que eu entrei na vida
acadêmica. Apesar da igualdade de sobrenomes, não éramos parentes. No
escolher-me para trabalhar com ele não houve, portanto, nenhum traço de
nepotismo; foi, apenas, o resultado de uma apreciação de mérito que a juízo
dele existia. Seja pelo seu nível exacerbado de exigência, seja pela luminosa
capacidade de descortino e de crítica que ele sobejamente exibia, tudo isso
aliado a um conhecimento sólido e enciclopédico, essa escolha constituiu, para
mim e para os que conheceram Plínio e sua época, o mais grandioso título que
recolhi na vida intelectual.
Devo confessar que Plínio não foi
uma pessoa qualquer. De algum modo ele resgatou, em minha vida, a mística do sábio professor, que se esfumaçara quando, com oito anos de idade,
descobri, estarrecido, que professores podem ser ignorantes, mais do que seus
estudantes, mesmo que dos cursos elementares. Conto a história. No meu tempo de
criança, o início da educação escolar tinha o nome de curso primário. Nele,
havia três matérias: Linguagem (língua portuguesa), Matemática (aritmética) e
Conhecimentos Gerais (mistura de história, geografia e noções de ciências). Ocorreu
que, em uma prova de Conhecimentos Gerais, a professora formulou a seguinte
pergunta de História do Brasil: “O que fizeram os jesuítas aos Tamoios?”.
Consoante a aula dada, a boa e querida senhora esperava que seus alunos
respondessem: “Os jesuítas pacificaram os Tamoios”. Acontece que eu preferi uma
resposta sintética, em uma única palavra: “pacificaram-nos”. A gentil criatura
não me deu os pontos da questão, que marcou como de resposta errada, e me
explicou candidamente meu pretenso equívoco no uso da forma verbal. Disse ela:
“Está errado, porque os jesuítas pacificaram a eles e não a nós”.
Ao contrário do que se tornaria
usual em tempos posteriores, não tive a petulância de responder que, em que
pese a ambiguidade da expressão escrita, errada estava ela, porque
“pacificaram-nos” era, no caso, o correspondente a “pacificaram-(n)os”, isto é,
pacificaram a eles, com um n eufônico acrescentado em virtude da terminação da
forma verbal em m. Que era assim, eu sabia, não por estudos linguísticos
precoces, mas pela simples leitura da “Gramática da Emília”, de Monteiro
Lobato, autor ao qual devo muito de meus primeiros conhecimentos. Chocado, apenas
olhei muito sério para ela enquanto, naquele mesmo instante, desenhava-se com
clareza em minha mente a convicção de que me precisaria restringir sempre ao
nível de ignorância dos meus professores. Desde esse incidente, minha
perspectiva estudantil foi a de que provavelmente meus professores seriam
ignorantes, e eu deveria tratar de aprender a
despeito deles, antes que com eles.
É claro que essa expectativa
pessimista e de excessiva severidade foi frequentemente desmentida por
professores excelentes, Alguns deles foram nomes famosos, como Aurélio Buarque
de Holanda – o Aurélio do dicionário. Outros nem tanto, como Zacharias Batalha,
de Matemática, com quem aprendi que o bom professor é aquele que faz parecer
simples o que é complicado, e não o oposto. Ele satirizava os mestres que
proferiam aulas magistrais que ninguém entendia, fazendo, no dizer dele, os
alunos pensarem: “Como ele é sábio... e como eu sou burro!” Oposto a essa
prática, o velho Batalha colocava-se diante de nós para que adquiríssemos
sabedoria, não para que fôssemos ofuscados pela sabedoria dele. Conquistou,
desse modo, minha admiração e meu respeito e ensinou-me a matéria que lecionava
e muito mais.
As experiências positivas, porém,
nunca apagaram de todo o “pé atrás” com que me aproximava de todos os docentes,
o que foi de grande valia, já que me protegeu da estupefação desencantada ao
testemunhar, algumas vezes, grandes homens dizendo tolices, por descuido ou
para não se darem ao incômodo de uma explicação mais precisa e também mais
demorada, o que representaria mais trabalho.
Com Plínio, foi tudo diferente.
Nunca o pilhei em nenhuma impropriedade, nenhum equívoco, nenhum deslize
intelectual. Foi a única pessoa com quem, quando eu argumentava em contrário,
já esperava, em meu íntimo, que ao final do debate seria revelado que era ele
quem tinha razão. Completamente cético a respeito de ideologias, tinha amigos à
esquerda, como Mário Schoenberg e Álvaro Vieira Pinto, e à direita, como Dom
Irineu Pena, monge beneditino que ele ainda chamava pelo nome civil de Weimar,
amigos de juventude que haviam sido. Aprendi com sua disciplina intelectual
irrepreensível que é preciso examinar-se o pensamento alheio dentro dos padrões
ideológicos que o hajam inspirado, independentemente da opinião que se tenha
acerca desses padrões. Lógica e crença precisam ser radicalmente separadas, e é
preciso primeiro conhecer para, depois, se for o caso, formular juízo de valor.
Além disso, Plínio era de uma
generosidade extraordinária. Em relação a tudo que alguma vez lhe perguntei, da
matéria dele ou de outras, estendia-se em explicações minuciosas, não raramente
apresentando aspectos originais ou pouco explorados do assunto. Enquanto
estudante, eu dizia que ele foi para mim a Universidade. Em tempos bem
posteriores, dediquei a ele, in memoriam,
minha tese de doutoramento em filosofia, definindo-o no seguinte mote: “o homem
com quem eu aprendi”. Minha admiração por Plínio, pelo que ele foi como
intelectual e como ser humano, era e é desmesurada, e qualquer homenagem que eu
lhe preste me parecerá sempre inexpressiva e insuficiente.
Tive o privilégio de desenvolver
com Plínio uma relação quase familiar. Fui convidado e admitido a participar de
sua vida doméstica e privar da intimidade dele e de Myrce, sua mulher. Frequentando-lhe
a casa, tive acesso a livros e revistas de sua biblioteca, razoável em termos
quantitativos e magnífica em termos qualitativos. Ali, encontrei obras de
autores que impulsionavam a vanguarda do conhecimento, comentadas e, muitas
vezes, contestadas por Plínio, em anotações de margem que continuavam em intermináveis
folhas de bloco enfiadas por entre as páginas dos livros. Eu perguntava: mas,
professor, por que o senhor não publica isso? Ele respondia que seu texto ainda
não estava completo, que havia questões adicionais que ele também não
resolvera, e assim por diante. É... Plínio escrevia para si. Em termos da
indústria acadêmica inventariada pela plataforma Lattes (aliás colega e amigo
de Plínio) ele não teria “produção intelectual” apreciável.
Isto refletiu-se em minha própria
atitude: se Plínio não se sentia em condições de escrever, quem seria eu para
fazê-lo. Além disso, sempre me pareceu que tudo que sei é óbvio, e não faz
sentido escrever sobre o óbvio. O próprio Plínio ria-se dessa ideia e me dizia
que o óbvio para mim não o é para todos. Além disso, com plena consciência da
evolução que se desenhava para o ambiente universitário, advertia-me
expressamente: “Você precisa escrever. Não faça como eu.”
Não lhe segui o conselho. Primeiro
por modéstia, depois por preguiça, aderi ao que, em termos da contabilidade das
publicações, se descreve como “baixa produção”. O fato de ter artigos de
estratégia traduzidos para o chinês e para o árabe nada importa diante da
computação numérica.
Esta é a explicação, talvez
desnecessariamente longa, da minha resistência a escrever. Ela me veio à mente
quando pensava na pergunta que me fez um de meus netos: “por que o senhor não
escreveu nada sobre a campanha eleitoral?” Ele se referia, evidentemente, à
campanha em curso em 2014, observando, por contraste, que publicara diversos posts referentes à campanha de 2010.
Remexido o passado, outras
lembranças voltaram. Desta vez, provindas da literatura que, logo após à de
Monteiro Lobato, encantou minha juventude: os contos de feição árabe da autoria
de Malba Tahan, escritor fictício criado, como heterônimo, pelo professor Júlio
César de Mello e Souza.
Em um desses contos, chamado O
Livro do Destino, ele fala de um homem amargurado e meio louco que afligia as
pessoas dizendo: “eu tive em mãos o Livro do Destino”. Convidado a explicar-se,
narra que conseguira com um dervixe misterioso os meios de encontrar a caverna
onde se guarda um livro no qual Allah escreveu, antecipadamente, o destino de
todos os homens. Ele levava pena e tinta para acrescentar, na sua página, a
certeza de tornar-se próspero e feliz, desfrutando de vida longa e saudável. Ao
folhear o livro, porém, deparara-se com a página de um desafeto e não resistira
à tentação de redigir, nela, augúrios perversos e cruéis contra esse homem.
Isto despertou-lhe o desejo de procurar as páginas de outros inimigos e
despejar, abundantemente, infelicidade e tristeza em suas vidas. Tão entretido
ficou nessa prática abjeta que não reparou na passagem do tempo. Logo lhe apareceu
um demônio horrível e truculento que o lançou fora da caverna, sem que pudesse
mudar sequer uma vírgula na descrição de sua própria existência miserável.
Por quê esta lembrança? É fácil
perceber.
Como o personagem de Malba Tahan,
os candidatos concorrentes nesta campanha esmeram-se em ofender, difamar, ou,
como está em moda no jargão político, “desconstruir” a imagem de seus
adversários, quando não a deblaterar contra Deus e todo mundo, na pretensão de
mostrar a perversidade de terceiros e a maldade de toda gente. Ao contrário do
que acontece em disputas desse tipo em países civilizados, a forma pela qual
isso é feito é, preferentemente, a mais chula, vulgar e grosseira que seja
possível, talvez porque os marqueteiros imaginem que se os comentários forem
minimamente polidos não serão entendidos pelo “povão” mal-educado.
Mas não é o “povão” mal-educado
que encontro no ágora virtual chamado facebook.
Ali, não é incomum ver gente de boa formação e que costumava exibir
comportamento gentil e ponderado nas relações sociais completamente
ensandecida, formulando ou repercutindo agressões e falando dos candidatos
adversários de seus preferidos como torcedores de times de futebol se referem
aos times com que têm rivalidade tradicional. Só que, dentro desta metáfora, em
vez de se orgulharem dos dribles e gols de seus jogadores, deliram com a
violência das faltas cometidas, como se aleijar o adversário fosse ganhar o
jogo.
E talvez seja. É bem possível que
o resultado eleitoral se revele mais influenciado por esse lastimável vale-tudo
do que por um julgamento bem informado, sereno e inteligente dos problemas
nacionais e de suas possíveis soluções. Exceção feita ao fanatismo ideológico,
que, por ser fundamentalista, é imune à discussão racional, o resto da
população deveria desejar e até exigir o debate inteligentel. Entretanto,
parece, à primeira vista, que os indivíduos não estão interessados nessas questões,
seja porque a complexidade dos problemas os colocaria acima e além do
entendimento do povo, seja porque as pessoas não percebem no quê e por quê
essas questões têm a ver com seu cotidiano, a única coisa, afinal, que efetivamente
importa.
Se realmente for assim,
apresso-me a dizer que a culpa não é do povo nem da democracia: é do
entendimento distorcido que as pessoas dotadas de algum tipo de liderança
costumam ter do modo de vida democrático. A democracia dá trabalho. Se os
problemas nacionais têm complexidade maior do que o que a compreensão popular
pode alcançar como evidência imediata, é indispensável que se empreenda uma
pedagogia política consistente na explicação desses problemas e suas possíveis
soluções. Se as pessoas não entendem que relações há entre os grandes e graves
problemas do País e o dia-a-dia de suas vidas, é preciso que isso lhes seja
minuciosa e didaticamente ensinado. Tudo isso é muito diferente e muitíssimo
mais difícil e trabalhoso do que “desconstruir a imagem do adversário”. Para esta
tarefa destrutiva, basta aos candidatos repetir, apenas, o que os marqueteiros
lhes sugiram, sem precisar sequer entender o que estejam dizendo.
Tudo isso, porém, me parece
óbvio, muito óbvio, até para os homens e mulheres que manipulam o poder. Não
acredito que os próceres da vida política façam o que fazem por ignorância;
fazem-no por má-fé. O preferível, para eles, é, mesmo, um mandato conferido por
um povo desavisado, movido pela emoção, porque este lhes permite agir como melhor
lhes pareça em seu próprio benefício e no de seu grupo político, ainda que se escondam
por detrás da retórica de que é tudo para o bem do povo. A alternativa é o
enfrentamento da tarefa de explicar os problemas e suas possíveis soluções a um
eleitorado crítico e consciente de seus próprios interesses. Esta via, entretanto,
é árdua, insegura e pressupõe que todos os que pleiteiam votos conheçam
razoavelmente os problemas e suas possíveis soluções. Como se sabe, isto é uma
hipótese exageradamente otimista.
Em palestra proferida em 1967, em
um congresso de lógica, metodologia e filosofia da ciência, Karl R. Popper
declarou: “Embora eu seja um filósofo muito feliz, não tenho, após uma vida
inteira de conferências, ilusões a respeito do que posso transmitir em uma
palestra. Por essa razão, não tentarei convencê-los nesta. Em vez disso, tentarei colocá-los diante de um
desafio e, se possível, provocá-los.” Não tenho sequer uma fração pequena da
notoriedade e da importância intelectual de Popper, talvez o mais relevante
filósofo da ciência do século XX. Por isso e com mais forte razão, não nutro
ilusões acerca de minha capacidade de convencer. Sou, também, descrente da
possibilidade de que grande número dos brasileiros venha a tratar de assuntos
políticos como questões efetivamente associadas à racionalidade. Então,
desafiar ou provocar seria entendido, neste caso, como um convite a possíveis
interlocutores para uma troca emotiva de impropérios, e isto eu não quero,
porque tal coisa, antes de me ofender, me cansa. Então, se a respeito de um
assunto só posso explicar o óbvio e, ainda assim, não acredito que minhas
palavras produzam efeitos construtivos, impõe-se a pergunta retórica: escrever para
quê?
Mas eu ainda compartilho da opinião de Plinio: "Você precisa escrever".
ResponderExcluirPois é, Professor. Uma das coisas boas que me aconteceram foi conviver com o povo suíço e notar as diferenças abissais entre sua mentalidade e a nossa (na Inglaterra não tive esta oportunidade, apesar de morar lá mais tempo do que na Suíça). Na Suíça há constantemente plebiscitos, como o senhor sabe. Eu ficava impressionado como meus conhecidos e amigos de lá sabiam explicar com grande desenvoltura os pros e os contras de votar assim ou assado. Saia muitas vezes para jantar com amigos e surgia à mesa estes temas; as pessoas discutiam, perguntavam a opinião dos outros, ficavam na dúvida, tudo de maneira muito polida e civilizada. Ao fim, se já tivessem uma posição formada, diziam: “vou votar assim por isto e mais isto”. Perguntei certa vez como os jornais veiculavam os temas objeto do voto. Disseram-me que, apesar das divergências ideológicas, os jornais, quando o assunto era objeto de plebiscito, tentavam ao máximo apresentar as visões antagônicas. Teve uma plesbicito certa feita que pretendia aumentar o número de dias das férias anuais. Os suíços rejeitaram a propostas porque, disseram-me, sabiam das consequências econômicas negativas para o país. Imagino como seria um plebiscito deste por aqui. O senhor com preguiça de escrever e eu, infelizmente, de ler com seriedade as notícias atuais.
ResponderExcluirMagnifico! Por que quando o Sr. escreve coisas complicadas, e que fogem do óbvio, ficam mais fáceis de serem entendidas.
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